terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Depois de te ver...

Ainda enebriada, toda desejo... repetindo pra mim mesma as palavras que foram suas(e agora são minhas)... e sabe a nossa conversa sobre talentos "inalcansáveis"?... me lembrei desse poema do Shakespeare. Nas duas últimas lines ele assina sobre sua grandeza, sabendo-se capaz de imortalizar a sua dama, uma das breves... ele sabe(o cara é foda) que por mais efêmero seja o que os dois têm, sua poesia é eterna. E eu aqui toda boba, sem saber catar as palavras suficientemente boas para te presentear e desejando que os dias- os nossos- sejam comparados aos dias mais longos do ano... e agora?! Tenho um "muso inspirador".


SONNET 18
"Shall I compare thee to a summer's day?"

Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm'd;
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature's changing course, untrimm'd;
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou owest;
Nor shall Death brag thou wander'st in his shade,
When in eternal lines to time thou growest;
So long as men can breathe, or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee.
William Shakepeare
(1564 - 1616)

Relato: Lágrima de Suor

Hoje chorei uma lágrima de suor. Ela brotou da minha testa e desceu até meu olho esquerdo...era salgada e ardia. A observei oblíqua, desenhando seu rastrinho de lesma na minha bochecha. Acho que na verdade, cansei de chorar.
Hoje foi um dia atípico. Lavei o chão da cozinha, limpei a gaiola, estraguei meu esmalte. E fiz isso por que eu queria. Pensei que assim talvez eu mantivesse meus fantasmas caladinhos no porão ou os afugentasse com o sabão em pó. Não adiantou.
Olhei me no espelho e a lágrima desceu calada. Nós estávamos caladas. Eu tenho essa coisa de solidão... deve ser síndrome de caçula de seis irmãos. Me olhava e me sentia estranha. As pessoas me conhecem tanto(elas acham), mas nunca me imaginam ali no espelho pinçando com precisão cirúrgica cada um dos fios da minha axila. Ser mulher é abdicar e negar várias coisas... como se o fim justificasse os meios.
Acho que na verdade eu tenho é medo de ser gente. É isso! Medo dessa minha humanidade, desses meus sentimentos exarcebados... de depender emocionalmente dos outros... de ser mais que um objeto à ser olhado. As pessoas me invadem sem tocar com os seus mil dedos tentáculos a minha cerne. Ela fica ali. As pessoas entram e saem da minha vida... e ela fica ali, desconhecida.
Minha irmã disse que eu vivo em uma bolha. Em um universo paralelo feito de introspecção. É que quando saio dele eu me machuco, porque as pessoas esquecem que debaixo da minha carapuça tem um treco mole. Assim, a areia é melhor, é segura, e de dentro dela eu escuto o mar. E também sinto seu cheiro.
Outro dia minha sobrinha entrou no meu quarto e ficou apontando as coisas: "Vovó! Gatinho! Neném", apontou pra mim e disse "Titia"... e eu falei "Nossa, minha bonequinha! Você já fala!" e o sorriso confiante e feliz dela me fez me sentir aterrorizada... eu existo para os outros afinal...e o amor, o amor é o que redime tudo. Esses amores incondicionais.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Enquanto te espero...

A Late Aubade

by Richard Wilbur(b. 1921)

You could be sitting now in a carrel
Turning some liver-spotted page,
Or rising in an elevator-cage
Toward Ladies' Apparel.

You could be planting a raucous bed
Of salvia, in rubber gloves,
Or lunching through a screed of someone's loves
With pitying head.

Or making some unhappy setter
Heel, or listening to a bleak
Lecture on Schoenberg's serial technique.
Isn't this better?

Think of all the time you are not
Wasting, and would not care to waste,
Such things, thank God, not being to your taste.
Think what a lot

Of time, by woman's reckoning,
You've saved, and so may spend on this,
You who had rather lie in bed and kiss
Than anything.

It's almost noon, you say? If so,
Time flies, and I need not rehearse
The rosebuds-theme of centuries of verse.
If you must go,

Wait for a while, then slip downstairs
And bring us up some chilled white wine,
And some blue cheese, and crackers, and some fine
Ruddy-skinned pears.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Hilda Hist: Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão

Sempre Hilda Hilst. Sou nuances: há dias que morro, há dias que vivo.


I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.

Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto.
Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo.
E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.



X
Se todas as tuas noites fossem minhas

Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.



Curiosidade:

ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO.
Seleção de poemas que deram origem à parceria de Hilda com o músico Zeca Baleiro em CD homônimo.


Relato: A Heall All

A heall all(cura a tudo) seria uma flor apenas. Eu, presa em minha casca, vícios e experiências...seria uma menina apenas--ou talvez uma mulher. Ah! a simbologia dos gestos, cores(roxas de cura) e a necessária ambiguidade das coisas que não vem prontas... isso é então o que me humaniza?
Minha pequena flor floresce alheia ao significado que lhe é dado. Sua inocência, seu nome peculiar e a cor da cura não lhe importam. À minha pequena flor, cabe apenas esticar as suas pétalas, espreguiçar ao acordar e ser, não significar.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Mesmerized by Robert Frost.



Bereft (Desolado)-AAAAABBACCDDDEDE. Único e lindo! Meu favorito.

Where had I heard this wind before (Onde ouvi esse vento antes)
Change like this to a deeper roar? (Mudar assim para um rugido profundo)
What would it take my standing there for, (Para quê serviria eu estar aqui)
Holding open a restive door, (mantendo aberta uma porta hostil)
Looking down hill to a frothy shore? (Olhando morro abaixo para uma beira mar coberta de espuma)
Summer was past and the day was past. (O Verão é passado e o dia é passado)
Somber clouds in the west were massed. (Nuvens sombrias se amontoam no Oeste)
Out on the porch’s sagging floor, (Fora, no chão velho e rangente da varanda)
Leaves got up in a coil and hissed, (Folhas se levantam em espiral e sibilam)
Blindly striking at my knee and missed. (Atacando cegamente os meus joelhos e sumindo)
Something sinister in the tone (Algo sinistro no tom)
Told me my secret my be known: (Me diz que meu segredo deve ser conhecido)
Word I was in the house alone (Palavra, estava eu sozinho em casa)
Somehow must have gotten abroad, (De alguma maneira cheguei ali fora)
Word I was in my life alone, (Palavra, estava eu sozinho em minha vida)
Word I had no one left but God. (Palavra, não me havia restado alguma senão Deus.)


Design (Design)

I found a dimpled spider, fat and white,(Achei uma diminuta aranha, gorda e branca)
On a white heal-all, holding up a moth (em uma heal-all branca*, segurando uma mariposa)
Like a white piece of rigid satin cloth (como uma peça de tecido de cetim rígido)
--Assorted characters of death and blight (Personagens de morte e albinismo escolhidos a dedo)
Mixed ready to begin the morning right, (Misturados prontos para começar a manhã certeira)
Like the ingredients of a witches' broth (como os ingredientes do caldeirão das bruxas)
--A snow-drop spider, a flower like a froth, (uma aranha gota de neve, uma flor como uma espuma)
And dead wings carried like a paper kite.(e asas mortas carregadas como uma pipa de papel)
What had that flower to do with being white, (O levou aquela flor à ser branca)
The wayside blue and innocent heal-all? (Os lados azuis e a inocente heal-all)
What brought the kindred spider to that height,(O que levou uma aranha daquele tipo até aquela altura)
Then steered the white moth thither in the night?( e então,conduziu a mariposa branca para aquela direção na noite?)
What but design of darkness to appall?(O que senão o design da escuridão para empalidecer)
--If design govern in a thing so small. (--Se o design governa em uma coisa tão pequena)

(A heal-all é uma flor roxa que floresce na Europa, Ásia, Japão e nos Estados Unidos, conhecida por suas características de cura)

Stopping By Woods On A Snowy Evening (Parado perto do bosque em uma tarde de neve)

Whose woods these are I think I know. (De quem é esse bosque que eu penso conhecer)
His house is in the village though; (A casa dele, no entanto, é no vilarejo)
He will not see me stopping here (Ele não me verá parado aqui)
To watch his woods fill up with snow. (para ver o bosque dele coberto pela neve)
My little horse must think it queer (meu cavalinho deve achar curioso)
To stop without a farmhouse near (párar sem nenhuma casa de fazenda por perto)
Between the woods and frozen lake (entre o bosque e o lago congelado)
The darkest evening of the year. (na noite mais escura do ano)
He gives his harness bells a shake (Ele dá um balanço em seu guizo)
To ask if there is some mistake. (para perguntar se há algo errado)
The only other sound's the sweep (o único som é o deslizar)
Of easy wind and downy flake. (de um vento leve e os flocos que caem)
The woods are lovely, dark and deep. (o bosque é adorável, escuro e profundo)
But I have promises to keep, (Mas tenho promessas a cumprir)
And miles to go before I sleep, (E milhas a percorrer antes de dormir)
And miles to go before I sleep. (E milhas a percorrer antes de dormir)

The Road Not Taken (A Estrada Não Trilhada) *adaptada da tradução de Renato Suttana

Two roads diverged in a yellow wood, (Duas estradas se divergiram em um bosque de Outono)
And sorry I could not travel both (E eu lamento pois não poderia viajar em ambas)
And be one traveler, long I stood (E como viajante, parei por um longo tempo)
And looked down one as far as I could(E olhei por uma delas o mais longe que pude)
To where it bent in the undergrowth.(até o declive onde ela se dobrava)

Then took the other, as just as fair, (E tomei a outra, parecendo justo)
And having perhaps the better claim, (e tendo talvez o melhor atrativo)
Because it was grassy and wanted wear; (porque era cheia de capim e queria se cobrir)
Though as for that the passing there (Pensei que o passar por ali)
Had worn them really about the same. (Daria no mesmo por qualquer uma delas)

And both that morning equally lay (E nas duas naquela manhã deitavam de maneira igual)
In leaves no step had trodden black. (As folhas que passo algum jamais escureceu)
Oh, I kept the first for another day! (Ó, guardei a primeira delas pra outro dia!)
Yet knowing how way leads on to way, (Ainda sabendo que um caminho gera outro)
I doubted if I should ever come back. (Eu duvidava que voltaria ali um dia)

I shall be telling this with a sigh (Provavelmente direi isso em um suspiro)
Somewhere ages and ages hence: (Em algum lugar anos e anos depois)
Two roads diverged in a wood, and I-- (Duas estradas se divergiram em um bosque, e eu)
I took the one less traveled by, (Eu tomei a menos viajada)
And that has made all the difference. (E isso fez toda a diferença)


Dust of Snow(Pó de Neve)

The way a crow(O jeito que um corvo)
Shook down on me(Jogou em mim)
The dust of snow(O pó de neve)
From a hemlock tree (de uma Cicuta)

Has given my heart(Deu ao meu coração)
A change of mood(uma mudança de humor)
And saved some part(e salvou alguma parte)
Of a day I had rued.(de um dia que eu havia arruinado)

Robert Frost é meu poeta favorito...posso recorrer à "Santa Wikipédia"? http://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Frost .Acima, meus poemas favoritos com uma tradução precária... não deixem de ler o original.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Mulher ao avesso. Mente e útero violados. Vampirizada, oca, apática e cansada. O célebre quadro de Edvard Munch.
A minha tpm, além do típico inchaço no seio, traz a nítida percepção dessa solidão. Fui mastigada e cuspida. E pior que a promessa de morrer seca é esse estar seca... essas sucetivas tentativas frustradas se transformando no que eu sou. Dessistência. Enjôo.
Por hoje, amar me dá náuseas... esse navegar instável demais para o meu estômago já sensibilizado.
E AINDA ASSIM meu relógio biológico tic-tac-tic-tac, meu útero se preparando pra uma criança que não vai nascer, uma cópula que não acontecerá, uma família que não existe...
É TÃO injusto... porque, porque não há lugar para ilusões em mim agora. Estou exausta.

Sou a viúva que nunca casou.

THE WIDOW'S LAMENT IN SPRINGTIME(O Lamento da Viúva na Primavera)

by: William Carlos Williams (1883-1963)

Sorrow is my own yard (Sofrimento é meu próprio jardim)
where the new grass (Onde a grama nova)
flames as it has flamed (flameja e tem flamejado)
often before but not (assíduamente, mas não)
with the cold fire (com o fogo frio)
that closes round me this year.(que se aproxima de mim esse ano)
Thirtyfive years (trinta e cinco anos)
I lived with my husband. (Eu vivi com o meu marido)
The plumtree is white today (O pé de ameixa está branco hoje)
with masses of flowers. (com toneladas de flores)
Masses of flowers (Toneladas de flores)
load the cherry branches(carregada de galhos com frutos)
and color some bushes (e colorindo alguns arbustos)
yellow and some red (de amarelo e um algum vermelho)
but the grief in my heart (mas o pesar em meu coração)
is stronger than they (é mais forte do que eles)
for though they were my joy(porque eles eram minha alegria)
formerly, today I notice them (somente agora, eu os notei, hoje)
and turned away forgetting.(e dei as costas me esquecendo deles)
Today my son told me (Hoje meu filho me disse)
that in the meadows, (que nona clareira)
at the edge of the heavy woods (na divisa com a mata densa)
in the distance, he saw (ele viu de longe)
trees of white flowers.(árvores de flores brancas)
I feel that I would like (eu sinto que gostaria)
to go there(de ir lá)
and fall into those flowers (e cair dentre essas flores)
and sink into the marsh near them.(e me afundar no brejo perto delas)

Relato: Despedida

Minha velha dificuldade em me encontrar. As páginas que arranco e sinto que não o deveria fazer, porque são parte do que eu fiz. Do que joguei inconsequentemente no mundo, em minha vida. Mas me reconstruo sempre. Sempre. Nas páginas novas que carregam tantas pessoas que não consigo arrancar de mim...Dela. Dessa Belo Horizonete que eu despreso. Me acolheu e eu a despreso.A pinça ainda é torta e continua pendurada no gabinete do banheiro, como a escova de dentes que agora, deixada aqui me pareceu menos minha. Me pareceu de um estranho.Sou outra coisa. Morri para a cidade e sua simbologia. Altivez e sonho e uma realidade embriagada.Mais crianças na minha família e os meus pêlos mais espessos. Envelheci mais(por ter sido adolescente de novo). E me sinto velha agora. Bem velha.Como a cidade e essa lua, olho prateado que um dia nem acreditei que era tão grande, e hoje não parece mais minha. Minha lua, vista da minha janela.Estranho esse passado que se delonga, que não passa. Esses apelidos de duas sílabas. Esses três(incluindo o meu).Me lembro da canção sobre o medo "E eu não o conheço bem, o nome dele é medo", medo. Não tenho ninguém que não seja fictício para dividir o meu medo. Recomeçar. Renovar.Suas músicas, minha rédea. Uma história de ninar que meu pai nunca contou. Em uma voz masculina que me tanto fez falta. Meu pai é quase mudo por falta de jeito em viver. Afeição difícil de enxergar. E eu crescia escutando as músicas do King Diamond fazendo de conta que ele era meu pai me contando histórias de terror.E agora volto para o meu pai de verdade. Minha mãe ficando cada vez mais velhinha e cansada. E os dois quartos me parecem estranhos. Não consigo dizer "meu quarto" e sentir isso no meu estômago. Me sinto sem lar. Vazia de agora. Cheia de vivências.Sou inteiramente nova para mim mesma. Hoje. Vamos dormir.

Conto: Um encontro com Estrela da Manhã

Acompanho os dois jovens pela trilha.Estive com o primeiro deles quando a mãe era espancada pelo padrastro bêbado...estive ao lado DESSE, pois são muitas crianças. Estive ao lado dele quando a mão pesada arrancava dois dos seus dentes de leite. Ao contrário do patético Cassiel, não fiz mais do que chorar as próprias lágrimas que caiam de seus pequenos olhinhos inchados. Me sinto abençoado por não saber o gosto do sangue misturado à saliva de um choro engolido.

Raphaela parecia gritar como se não houvesse vivido aquilo uma eternidade de vezes, suas mãos de pétala tentando conter as do padrasto. Ela virou o rosto e orou. Eu no entanto, jamais questiono as ordens Dele. A sabedoria Dele é infinita. Não sou simpático aos humanos. Esse comportamento fez com que Estrela da Manhã liderasse seu exército imundo, e lhe restasse agora e sempre acolher todos os monstros.

Antes de andar entre os humanos e tentar corrompê-los por pura vontade de possuir, Lucifer parecia inteligente, parecia sagaz, parecia forte. E o amava. Reconhecia de longe o ruflar de suas magnificentes asas. Cabe somente ao Pai esse amor que eu já desconheço. Eu o vi se seduzir Cassiel como se não o conhecesse, ou pior, exatamente por conhecê-lo. Eu o vi estender a bebida e falar sobre a riqueza inventada por ele... eu o vi rindo seu sorriso largo e se apresentando como "o próprio tempo"...

Mas Cassiel voltou para nós, assim como voltará Damiel.

Lúcifer não. Ao retirar os homens do Paraíso e mantê-los para si, ele é como o gato que dorme com o cão... é um inimigo somente durante o dia, pois a noite precisa sôfregamente de cada uma dessas almas para acalentá-lo em seus jogos de poder e calar a ausência Dele. Lúcifer deixou de ser um mensageiro para ser um escravo da própria humanidade a quem repudia...Nós servimos à Ele. Lucifer serve aos humanos.

O sol está mais baixo agora. Em breve cairá a noite. Para mim apenas a mudança do Céu, para os dois- que agora sentados na relva, suas costas contra um tronco seco- para os dois um dia a menos a se viver. Eles se agarram à essa vida como se fosse a única. Nem ao menos acreditam em Nós. Nós que estamos sempre tão perto.

Um deles está assobiando, e o outro brinca com uns gravetos. O saco pardo repousando como se fosse um terceiro amigo. Por um breve momento lembro-me dos assobios de Damiel. Nunca o entendi. Trocar algo infinitezamente maior por algo tão singelo. Ouvimos suas preces todas as noites. Alguns de nós ainda conseguem lhe falar.

Acariciando os rostos dos dois meninos, eu sussurro sobre o Amor, e com as minhas mãos eu toco os seus cabelos. Eu os chamo por seus nomes. Eu tento lhes lembrar de todas as vezes em que estivemos juntos. Tento lhes dizer que escutei cada um de seus apelos e que ouvi a voz de Deus me pedir para que olhasse por eles. Falo sobre Ele, que é três, falo sobre como Ele os tem cuidado desde o dia em que lhes foi dado o sopro da vida.

Suas mentes tomadas por delírios e vontades primitivas. Eu sentiria dor e cansaço se fosse como eles. E a minha voz ecoa vazia. As orelhas estão avermelhadas e eles estão tomados de excitação.
Não são mais do que dois pequenos animais agora. Eles não querem me escutar, é inútil.
O barulho da sacola de papel me impele a deixá-los, Ele me toma com seu infinito Amor e me diz que não devemos fazer mais do que foi feito. Disse que os deu livre-arbítrio, e que no Paraíso não há espaço para todas as criaturas da Terra. Me disse que o Éden é feito somente para as almas dos homens que o desejarem.

Sinto pena de Lúcifer ao olhar para trás enquanto abro minhas asas. A fumaça dos cigarros e ao som da bebida saltando dentro da garrafa. Um sorriso débil refletido no vidro com uísque barato. Ele nunca será o Pai. Sorri como se aqueles dois já fossem dele, menospreza o Amor e o Perdão...e o poder de transformação. Toma seus novos filhos adotivos, e continua o jogo que ele mesmo criou para o homem e pelo homem e que finge ser seu.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Relato: Primavera

As pessoas pisoteiam o mato sem se questionar sobre a beleza das coisas escondidas. Uma hortência, em sua petulante beleza anil, é o senso comum do jardim. Ela é óbvia, gritante e comum.Um dia, olhando um muro de hera, percebi pequenas florezinhas amarelas, minúsculas, de uma beleza sôfrega e tão pequenininha que chegava a ser emocionante.Hoje, depois de ler um desejo- uma amiga que espera florescer os seus jardins- me dei conta que a esperança é uma dessas florezinhas sem vergonha... dessas que sempre pisoteamos, e que por puro altivez, ou até por pura ignorância, julgamos ser nada mais que mato. A flor, jamais ofendida, resnasce de novo, e de novo, o sol frágil e pequenino que aprendemos à amar .

L'amour et La Mor

L'amour et la mort(O Amor e a Morte)
c'est l'amour(é o Amor)c'est la mort(é a Morte)
c'est l'amour, c'est la mort(é o Amor, é a Morte)
la mort n'est que la mort(a Morte é só a Morte)
mas l'amour c'est l'amour(mas o Amor é o Amor)

Pricess Of Nile

Nile Princess a sinuous woman river
Cinnamon girl colored with the sand
Your sensual dance makes me shiver
My desire grows like water strings

Egyptian Queen, River Offspring
Incense smell of pagan divinities
Your tiger flesh golden dressed
And your long witchcraft fingers

The Underworld is a garden of yours
Snake dancer, Golden Crowed
Osiris, Anubis, slaved small Gods
By your beauty of carnal devour

Filling all senses with your complexion
No Horus to wait for
Queen of the desert, Cinnamon Princess

Relato: Visita

Recebi uma visita. Foi a tarde de calor do campus. A cor e o som de várias continhas postas juntas como irmãs unjidas e necessárias. A voz, essa canção, toca a coisa mole que escondo debaixo da carnadura. Se me finjo altiva, se me finjo silenciada, na verdade é por pura falta de tato em lidar com algo maior do que eu posso querer dizer sem soar como hipócrita. Consigo falar de saudade. De beleza. De danças. Mas me falta o jeito de falar dela. Recebi uma visita que me fez extremamente feliz por alguns segundos. Até me esqueci do tempo. Até me esqueci de dizer que ela me faz sorrir por dentro.

Relato: O Horror, O Horror

Toda eloqüência tem o seu julgamento triste. Havia prometido a mim mesma que usaria minhas palavras para o meu próprio bem, mas as vezes a noção de amor próprio se mistura à uma pitada demasiadamente grande de crueldade...e eu me lembro que não sou um dos selvagens com quem comungo. Sou pós-cristã, não sou tão antiga, ou tão primeira...as desculpas da ignorância ou da alienação não me servem e eu acabo como Kurt em seu momento de iluminação "O Horror! O Horror!".Em uma tentativa desvairada de me encontrar em um local de abrigo, me misturo com o próprio coração das trevas e me vejo esquecida como indivíduo. Distanciada da experiência que já vivi, esquecida pela civilização em que me criei...e me recriou como um pequeno Deus para pessoas que adoram deuses pequenos.Queria eu achar o meu Deus. O centro que me falta. A semente crescida no meu útero, mas depois de ter sido adorada. Ter sido embalsamada viva pela eloqüência e pela vêemencia com que falo das coisas não há um ser humano que não se intimide ou que se veja perplexo com a descoberta de que eu não passo de uma simples mulher.

Conto: Carne

Ao passar pela ponte solitária ouvira mais uma vez as vozes. Seriam elas humanas? Pois não pareciam. Eram límpidas e ecoavam como se não houvesse nada entre elas e a atmosfera, como se fossem produzidas por algum organismo biológico que vibrasse com a passagem do ar. Como se fossem feitas de carne e não de correntes cerebrais.Carne era algo que pouco se conhecia. Somente sabia-se algo sobre a respeito. Era o material dos cérebros e dos tecidos internos, e supunha-se haver uma densa camada de carne abaixo do tecido metálico que cobriria toda a extensão do corpo-concreto, mas que é seria inteiramente dissolvida ao entrar em contato com o ar.Ele nunca havia visto carne. Em suas incurssões noturnas gostava de ir até a casa de partida para ver os corpos serem sepultados...por vezes, alguns saltavam da máquina e eram lançados à metros de distância. Porém, a camada metálica jamais se rompia para que ele pudesse vislumbrar a parte interna do ser humano. A pele se amassava, perdendo um pouco do brilho do metal e a expressão dos cadáveres era horrível, como se não estivessem mortos, como se nunca tivessem vivido...nessas horas ele entendia o porquê de não haver superfícies refletoras na maioria dos quartos.Segundo os comentários dispersos na Rede, só se poderia ver o sangue e a carne por um milésimo de segundo antes que eles evaporassem na atmosfera. Diziam que o sangue evapora tão rápido quanto o hidrato de oxigênio. Seus avós lhe contaram que somente há três séculos a Medicina passou a ser uma ciência oculta relacionada à criação da vida e à espiritualidade. Antes, qualquer humano com determinação e esforço acadêmico poderia estudar a anatomia e até aprender pequenas operações laboratoriais. Após uma mudança no governo político, foi decidido que a medicina e outras ciências seriam restritas às pessoas da manutenção da vida.Pouco se sabe acerca do passado. Todos, fora do círculo dos escolhidos pelo teste de sensibilidade, acabam mortos tragicamente nas tabernas da Grande Rede ou simplesmente desapareciam do mundo de contato. As pessoas eram fortemente aconselhadas, pelos médicos e líderes espirituais, a nunca deixarem as suas comunidades virtuais e olhar os resquícios da realidade concreta. A maioria delas jamais o faziam, pois, só havia a necessidade de se lembrar de seus corpos-concretos na ocasião do nascimento de um novo humano. Demoravam-se de dois a três anos para que os dados genético dos pais do embrião fossem coletados.Ele perguntava a sua amante como ela conseguia lidar com a distância geográfica. Perguntava por que não nos questionávamos sobre as outras quarenta pessoas que estavam em um mesmo quarto. Seriam eles conectados à nós...e o Governo os mantinham próximo, ou éramos intencionamelmente separados de outros eu-concretos com os quais nos socializávamos? Ela respondia que seria doloroso demais viver em um mundo que dependesse da distância geográfica entre as pessoas...chamava a isso de loucura nostálgica e doentia, suicídio.Mas ele continuava a sair. As suas rodas já estavam desgastadas e sabia que se continuasse com suas aventuras logo se desconectaria para sempre da Rede, sendo a própria Casa de Despedida o seu fim próximo. Deixaria de existir para os outros. Uma única vez conseguira ficar um ano inteiro sem sair do quarto, porém, quando se completavam as 16 horas de atividade cerebral espontânea, ele se despedia de todos para continuamente sonhar com as vozes da ponte e o mundo concreto.Na ponte as vozes ficavam mais intensas. Se é que seriam vozes... ele se arrastava com dificuldade, seus braços pendidos com as juntas arrebentadas. Após andar mais dez milhas, suas juntas motores inferiores se arrebentaram fazendo com que a parte traseira do seu corpo de desconectasse inteiramente da parte superior. Por anos inteiros ele teve como única visão a linha acinzentada da ponte. Vivia de lembranças das pessoas que conhecera na Grande Rede e esperava que seu suprimento vital se esgotasse em menos de dez anos. Sua existência imergira em melancolia desesperadora... sentia dores horríveis. Hermético. Paralisado. Condenado. Como se uma superfície densa o isolasse de si mesmo e dos outros.Sua visão, quase cega percebeu um brilho à algumas milhas dali. Seria isso o conceito flutuante de felicidade? Em toda a sua vida, aquela era a primeira ocasião em que se encontrava com outro desconectado. Uma ânsia infantil tomava todo o seu corpo estilhaçado. O brillho se tornava menos ofuscantes e as sombras davam ao vulto as formas familiares e idênticas às dele. Era de fato um desperto!O outro, que ainda se movia, estava agora diante dele. Ele jamais saberia diferenciá-lo dos mortos se não fossem pelos sutis movimentos dos aparelhos vitais. Tomado de horror ele só então notava que ambos eram incapazes de se comunicar... e que pela posição em que se congelou ao arrebentar suas engrenagens motoras, a caixa de alimentação jamais seria notada pelo outro desperto. Estava morto, ainda que suas funções cerebrais estivessem fervilhando de emoções nunca antes sentidas.Aos poucos ele procurou se concentrar nas vozes da ponte. Estava certo de que eram humanas, que viam do passado primitivo. Procurou se distanciar do movimentos das engrenagens do desperto, que iam se tornando menos e menos perceptíveis a medida em que ele se afastava dali. O pânico da chegada Hora o sufocava...assim que o outro se conectasse, ele avisaria aos coletores e em algumas horas, seu eu-concreto seria derretido na Casa de Despedida. Certamente todos já o consideravam como morto. Na Grande Rede, seu nome estaria escrito na gigantesca Placa do Adeus.

Conto: Senhor Bigodes

Bill e eu não nos falamos direito desde o acidente. Ele tem bebido todos os dias e o meu sono se tornou muito leve. Escuto o clac clac da lata de cerveja e o jato de urina de Bill caindo na água depois de exatos dez minutos. Nossa casa não é muito grande, sabe. O suor dele se tornou amargo com a levedura, e todos os lençóis têm uma mancha amarelada, como se fosse o contorno feito em giz em um cadáver. Essa noite a Emily voltou a "fazer pipi" na cama. Ela já tem cinco anos, meu Deus!... aqueles olhinhos cheios de culpa e eu exausta, nem ao menos respondi o "me decupa, mamãe". Maldito gato. Se não fosse o maldito Senhor Bigodes não teríamos, o Bill não teria tido que...Olho as estrelas do lado de fora do trailer. Daqui a quatro horas estarei fritando batatas, o cheiro da gordura velha entupindo o meu nariz, as risadas dos casais felizes e extravagantes vindo das mesas...danço com a mão no ar enquanto sopro a fumaça do cigarro fazendo em forma de círculos...a ponta dos meus dedos está ficando cada vez mais amarela por causa da nicotina, eu também tenho fumado muito mais. O meu hálito não deve estar tão agradável para o Bill, ele também não tem me procurado. Tento me concentrar no céu aberto. O bichinho verde está dependurado na janela da Emily de onde vem uma claridade translúcida. Procuro não olhar para o pedaço de madeira cheio do cérebro do Senhor Bigodes encostado debaixo da janela, mas meus olhos estão lá, procurando os pedaços ensaguentados de miolo de gato, chapiscados de pêlos marroms.Resolvi caminhar então. Perto do trailer tem uma dúzia de árvores...as folhas cobrem o chão que virou uma massa fofa de folhas antigas, como um grande edredon. Se não fossem os insetos eu me deitaria ali mesmo. Bill abre a porta do trailer e me acena, a lata de cerveja na mão, para em seguida fechá-la mais uma vez.Estou sozinha...acendo mais um cigarro e enconsto na árvore, roçando os meus pés um no outro para me coçar das picadas. Tenho a impressão de ter visto um pequeno rabo. Um rabo amarelado... só então noto o cheiro. A barriga aberta do Senhor Bigodes. O gosto da sopa do jantar me sobe a boca. Aquele desgraçado do Bill. A pobre Emily poderia ter achado ele aqui. Resolvo eu mesma jogá-lo em um buraco. Escuto o ronco do Bill enquanto furo a terra. O cheiro da terra é agradável.
Quando toco o Senhor Bigodes com a pá ele se levanta. Um pouco trôpego, como se fosse um velho bêbado. A orelha pendendo por um pequeno fio do resto de carne amassada que antes era o seu crânio._ Bom dia Jade.-diz Bigodes com sua cabeça pendendo da esquerda para a direita, como a de um bebê recém-nascido forçado a ficar ereto- Preciso de um favor.Os dois olhos mortos fitam a minha máscara de pavor. O cigarro me queima o dedo. Mas só consigo me fixar naqueles olhos, um deles parcialmente vazado. Ele era um gato bonito, penso.Senhor Bigodes senta, e com um miado profundo de dor chama alguém ou alguma coisa. De dentro da mata saí um pequeno filhote. Um filhote de jaguar. A barriga maior do que o corpo...a cabeça demasiadamente grande._Este é Taralonamon, um deus felino. Seus dentes são poderosos e esmagariam o corpo inteiro de um homem. Seu hálito causa náuseas à qualquer um que o sinta a um quilômetro de distância. Semana passada tentei avisar Emily que ele nos visitaria, foi quando seu marido me assassinou brutalmente. A pequena Emily é mais estúpida do que pensei... achei que entenderia o que eu estava desenhando no lençol.Eu tentava falar, tentava olhar o deus gato, mas minha vista se desfazia, era como se a fumaça do meu cigarro estivesse enchendo os meus olhos de lágrimas._Taralonamon veio para me avisar da minha própria morte, mas também para me conceder a graça de lhe pedir para salvar a vida dele e de seu marido. Quando o sol terminar de surgir, você precisa ficar no trailer, na casa. E empedir que Bill saia, pois ele irá atropelar Taralonamon pela manhã. E os dois vão morrer. E eu terei morrido brutalmente e em vão, já que um berseck sempre morre por seus donos. Assim é desde o nascer do Egito, desde antes das sete pragas e assim deverá ser por todos os tempos.Bill acorda as oito. Eu nem ao menos consegui dormir. As sete e meia a Emily foi para a creche junto com a Dalila. A mãe estranhou o meu aspecto. Só então percebi que meu cabelo estava cheio de terra e embarassado. Ela me perguntou se eu queria que ela ligasse para o meu trabalho...eu disse que não adiantava mas agradeci. Falta é sinônimo de demissão na grande rede de fast food. Então, tomei um banho e vesti a minha melhor lingerie. A que eu usava antes da Emily quando ainda era stripper. Eu sabia o que viria em seguida.Bill não fala nada. Seus dentes são mais brancos do que os meus...engulo os resíduos do que ele comeu na noite anterior que ainda estavam em sua língua, mas se ele me beijou é um bom sinal. Ele não vai me bater muito hoje. Bill está ofegante sobre mim agora. O feche da almofada está arranhando a minha barriga, mas não posso interromper...já fazem dois anos que não tenho um orgasmo. Desde o dia em que ele me traiu com aquele travesti. Agora ele se esquece que eu sou mulher... mas não me importo. Ele é um excelente pai. Ele proteje à Emily e à mim. Trabalha todos os dias no barco de pesca e nunca reclamou. Sinto as suas mãos calejadas e grossas em torno do meu pescoço; ele puxa os meus seios para baixo e eu posso ver pequenas queimaduras de sol em sua pele. Fecho os olhos e me deixo levar. Não consigo pensar em perdê-lo. Estou cheia de gratidão pelo Senhor Bigodes. Bill diz que me ama e me pedi para virar. Posso sentir um calor dentro de meu ventre. Minha pulsação está alta. Ele beija os arranhões em minha barriga. O relógio marca nove e meia. O barco já saiu. Bill é só nosso Emily, só nosso hoje. É a primeira vez desde o acidente que fazemos amor. É a primeira vez em dois anos que ele me toma como sua esposa e não sua amante... seus olhos estão como a ressaca do mar. Enrosco minhas mãos em volta do meu homem e sussurro: _ Temos que arrumar outro gato!

Conto: A Cor da Parede

As paredes do meu quarto são amarelas. Eram brancas até os doze. Uma luz vinda do poste atravessa o meu teto de maneira aconchegante. O rio Nilo! - digo para o Croc. Croc parece feliz, com o seu verde de pelúcia e seu sorriso amistoso e cheio de dentes, a língua pende ao lado deles.Não quero dormir de novo. Os jogos do computador são tão distrativos, mas na tela preta do monitor escrito "loading" vejo meus próprios olhos apavorados. Meu coração está vazio. Meu irmão sai daqui...deixe me ver, três horas.O seu ronco suave vem do quarto e eu imagino um enorme crocodilo no Nilo. Amon-Ra, o comedor de mortos, e Anubis pesando o coração- a balança de ouro pinga sangue. O sangue de verdade é escuro como o da primeira menstruação: pedaçinhos de útero preto-avermelhado e gosmentos na minha calçinha, e eu estava brincando de massinha. Minha mãe escuta o grito vindo do banheiro. Eu sabia o que era. Sabia. Só não queria. Nunca quis.O cheiro de musgo e terra ainda está nas minhas narinas. Eu sou o crocodilo da seca do Nilo. Ouvi dizer que eles dormem sentindo esse cheiro até a seca acabar, as vezes, sobrevivem por mais de três meses. Diminuem seus batimentos cardíacos.Eu morreria. Toda vez penso que vou morrer. Essa é a terceira. Só espero que meu coração na balança seja mais leve; não quero tê-lo devorado. Sei que Amon-Ra não é tão simpático quanto o meu croc.Estranho que ele é tão bonito... o oráculo. Nãaaaaaao. Não quero chamá-lo. Mas ele sempre vem. Sua cabeça dourada e redonda, o entalhe de sol, a expressão fixa. Um longo vestido de musgo verde escuro cobrindo o corpo sensual de mulher crescida, as pernas somem no chão engolidas pela terra de onde ele saí fazendo um barulho de parto. As mãos nunca param de dançar. Uma dança mórbida e aflita, ondas e ondas de um mar revolto, o quadris o seguem.O oráculo não parece feliz apesar de sua expressão não denotar sentimento, parece um escravo dos seus próprios movimentos e a terra o cospe. Em mim. Seu cheiro chega antes, começa com a terra molhada, depois vem o musgo e por último o cheiro de humidade. O cheiro de humidade sufoca. Me sinto claustrofóbica, enterrada viva na encosta do rio, os olhos cheio de moscas. A boca de um afogado.A primeira vez, aquele rosto sem boca, olhos sem pupilas, me disseram com uma voz dentro do meu cérebro que eu não queria, que eu não queria, mas que ele me diria coisas sombrias, segredos ruins, ia desenterrar a cabeça de porco que jazia na terra do meu quintal. escondida. A cabeça de porco em decomposição. O fruto ruim. O fardo secreto. A terrível noite. Disse que me pouparia se eu procurasse a caixa de sapato de criança debaixo da terra do quintal. os olhos sem pupilas olhavam de dentro dos meus onde deveria cavar e cavar. Antes da chuva.Minha cama ensopada, de sangue, menstrual. Achei que havia urinado também, mas era só suor. Minha camisola grudada no corpo. O croc caído no chão de barriga para cima. Tomei café de pão e margarinha molhados no copo cheio e escuro. Mamãe e o pai sairam cedo. O irmão ainda ia pra escola, me mandou andar logo. "Sua gorda pregüiçosa". Não iria conseguir ir a aula. Sem querer disse a ele que levasse um guarda-chuva, e ele perguntou se eu tinha comido demais e estava doente. Arrange outra desculpa, o céu está limpo, otária! E me deu um beijo estalado na testa salgada de suor.A chuva caiu as três horas. Tapei a cabeça com o travesseiro e chorei. Quando eles chegaram eu já estava dormindo. E ainda era tardinha.O cheiro veio de novo na noite seguinte. O banheiro branco daqui de casa. A água da privada se tingindo de vermelho. E o meu irmão não-nascido. Tinha olhinhos e mãozinhas. Tudo tão esterilizado e branco. O vaso branco. E o bebê. Os passos da minha mãe no corredor e de volta ao banheiro. A roupinha branca também. Não é para vestir. É um manto fúnebre. Um sudário para o pequeno ser. Quero o meu quarto de outra cor. Minha mãe não chorou.Posso evitar. Assim como poderia ter achado o pequeno crânio no quintal. Mas não quero. Sou uma assassina por omissão. No fundo sei que aquele coração enorme na balança é o meu e sinto os dentes afiados dilacerando a carne. Minha própria carne. Nego o meu dom. Não quero usar o oráculo. Não. Mas sei que o maldito me visitará até a morte. Sei tudo o que me vai acontecer até a eternidade. Sei tudo sobre mim e esse é o meu fardo. Melancolicamente longo.O irmão vai matar hoje. Por cinqüenta reais. Serão seis facadas nas costas. Seria melhor que ele vendesse o botijão da cozinha. Eu não falaria para mamãe. Não de novo. Não depois do que aconteceu da última vez. Seremos eu, mamãe e o croc. A polícia o vai pegar e ele será continuamente violado na cadeia por um dos presos. Eu não me importo. A escolha foi dele, ainda assim.Vou ser devorada. Minha alma. Esse é o desfecho. Mas um preço pagável para sermos só nós. Minha parede é amarela agora. Não sabia que mamãe estava grávida, não sabia que ela abortaria ao ver o meu irmão fazendo aquilo comigo. Papai não sabe também, nunca saberá, a não ser que eu escolha desenterrar algumas coisas literalmente. Afinal, aquele bebê seria outro menino, e eu não saberia o peso do seu coração. Só o de papai talvez seja leve. Apesar dele passar mais tempo fora do que conosco.Os dentes de Amon-Ra cintilam com a carne na noite. Mas nunca sei como é o final dos jogos.

Conto: Coyote

Hoje o dia floresceu que nem cactos habituado a ser seco, espinhento e que um dia cisma de dar flor. E eu, então, resolvi pegar o caminho mais comprido e barato até a faculdade de educação. Desprezando todos os conselhos dados por minha mãe, fui distraída olhando as árvores de Outono. Pensando como é boa essa estação com cheiro de meio das coisas em que toda casca de árvore lembra a jabuticabeira da casa de Vó.Tinha uma árvore enorme, e lá no alto davam jabuticabas bem bitelas que eu, quando menina, subia no pé para chupá-las. Fiquei me perguntando porque essa menina quis aparecer hoje e me dar disposição para me exercitar.O prédio da faculdade de educação brota no meio de uma montanha cheia de floresta e grama em volta. Para subir até lá, pego uma escadinha de degraus muito pequenininhos e amontoados que finjo ser uma pirâmide Maia. Isso me distrai de ter que subir até lá no alto.Também fico pensando que na floresta do campus tem lobo mau. O lobo cinza tão bonito e com seu uivo sedutor e primitivo... mas até hoje só tinha encontrado gente. Estudantes iguais a mim... indo e vindo de um prédio para o outro, cortando caminho pela floresta sem ter uma vovó para quem levar uma cesta de gostosuras.Sabe, fico chateada de não ter lobo no Brasil! Só lobo guará, simpático igual cachorro vira-lata, mas que nem tem o pêlo peludo e prateado. É até um bicho bonito, mas tem medo de gente e nem come carne. O lobo mau não! Devora a vovozinha inteira e ainda fica querendo colocar a menina de chapéu vermelho dentro daquele estômago grandão.Queria, ao invés de ver o estacionamento da faculdade de educação, achar a cabana do meio da floresta! O fogão de lenha aceso, esquentando um chá para a neta. Quando era criança, tive uma Vó que morava numa casa no meio da floresta... de verdade. A floresta era um quintal com bananal, abacateiro e até amora! Mas para eu, que era pequena, aquilo ali era um baita de um matagal, com reguinho d’água e tudo! Só que também não tinha lobo! Tinha era um Léo, um cachorro rabugento e marrom que eu amava muito!E eis que no estacionamento vazio de gente(eu estava atrasada para aula), vi um rabo marrom atrás de um carro. Não era rabo de rato, nem de raposa, nem de cavalo. O rabo saltou para trás de dois olhos vivos e uma bocarra assustadora cheia de dentes amarelados.Era um coyote faminto. Ele bufava e chispava de um lado para o outro, fazendo uma dança selvagem. Fiquei hipnotizada! Gordinha desse jeito ia dar um prato farto para aquele bicho ali. Sempre esperei o lobo mal e me aparece logo outro bicho dos estates! Esse mais mexicano do que americano. Marrom vívido e magrelo, com cara de danado. Cão do diabo. Bicho encrespado e encardido. Deu até dó dele.O coyote então pula para cima do carro, me olha bem na cara e dá uma gargalhada cheia de raiva e ao mesmo tempo amor. “Vou te devorar menina! Assim bem cangaceiro, contando as minhas proezas! Te fazendo sentir medo do que sou... a verdade! Nada de ludibriar e inventar! Ou de travestir e seduzir! Eu, coyote, sou pai de tudo que existe! Sou a fome que persiste! A corrida selvagem pelo deserto! O uivo desesperado para a lua! Não sou pomposo, só sou o que sou!”Nessa hora, fiquei até com vergonha! Pensando um pensamento de que os olhos fundos do coyote fuçavam bem a minha cabeça, assim, reclamando dele não ser o lobo. Então gritei: “Eu lá tenho culpa de gostar do que gosto?”. Em um salto atlético o coyote me derruba no chão. Sua baba com cheiro de carniça pinga na minha testa e ele respira como se fosse um dragão prestes a cuspir fogo.A pata dele me lembrou um pouco as dos meus gatos, uma pata pequena e esperta para um bicho tão feroz! Senti um comichão crescendo, frio dentro da barriga, de preguiça de morrer e deixar o meu sofá vermelho assim, sem os gatos nunca terem sentado nele. De deixar minha mãe sem a gente ter viajado juntas para Paris. De deixar minhas sobrinhas antes delas me contarem coisas de namoros. Os meninos das minhas irmãs antes dos bigodinhos crescerem. De deixar minha enteada que nunca ouviu umazinha das minhas histórias. De deixar o neném que nunca cresceu dentro de mim. De deixar o homem sem que ficássemos velhos.Olhei dentro dos olhos do coyote, assim de tão perto dos meus que nós dois estávamos meio vesgos, e vi coisas lindas: índios dançando, fogo, deserto, poeira, lua, rios e um sol.O coyote também estava apaixonado e por isso a gente se encontrou. Ele ama uma índia que veio dar palestra hoje(que é dia do índio)... ele havia sonhado com ela anos e anos. E ela não era índia igual tinha na terra dele. Era índia tupi guarani de cabelos pretos e lisos, de formas mimosas e cheias e a carinha redonda que nem a lua.Toda vez que ele uivava para a lua, uivava pensando nela. Toda vez que ele corria e corria e corria pelo deserto, era tentando alcançar aquela índia lá no alto, disfarçada de lua bem no meio do céu. E foi assim, que um dia, no susto, ele chegou no Brasil. Falava um Português meio ruim mas dava pra gente entender.Aí que a minha sorte foi tão grande, que quando a boca dele já se abria para abocanhar o meu pescoço, a índiazinha tupi guarani começou a cantar. E era uma música tão cheia de chocalhos e falando dos curumins que são como girinos, que o coyote parou o que fazia e resolveu ficar só fantasiando o futuro e os filhos curumins coyotes, correndo no deserto quase mata de Minas Gerais.Entrei no prédio, fui até o banheiro, e com as mãos umedecidas limpei da minha roupa preta as marcas das patas do coyote e também lavei o rosto. Cheguei muito atrasada para a minha aula de Prática de Ensino, mas nem quis justificar. E além do mais, estávamos falando de Krashen e suas teorias, coisa que sempre gosto de ouvir.Hoje a noite, depois que arrumar minha mala para ir morar um pouco com a minha mãe, vou agradecer o Outono pelo encontro! E mais do que tudo, me sentir agradecida por no Brasil só ter bicho pacífico igual a gente mesmo! Viva o lobo-guará e o mico estrela!
John Nieto- Coyote II

Conto: A Sentença de Morte

O jardim se estendia a se perder de vista. Os narcisos ali estavam para lembrá-lo de não se auto-idolatrar, afinal, os súditos, suas pequenas Eco, já se encarregavam dessa tarefa. O passo era manso e descuidado, apesar de por vezes ele já haver encontrado uma pequena serpente atravessada por entre a grama. Ele as chamava de fino amigo, e achava engraçado uma linha tão tênue ser a passagem entre a vida e a morte.Parou junto à uma das duzentas fontes idênticas do jardim e ficou a contemplar as carpas... quantos olhos haveriam pousado sobre aquelas, além dos encarregados de alimentar os peixes? Será que estes as olhavam? Apesar de haver outras duzentas fontes idênticas e inúmeras carpas parecidas?E foi quando lá do fundo da água(ou seria de si mesmo) ele escutou um pequeno choro.O choro parecia um farfalhar de asas de borboletas, mas o pequeno rei sabia que era um choro, pois o som era profundamente melancólico. E lá no fundo ele viu o que a princípio achou ser uma salamandra aquática e mais tarde veio a descobrir que se tratava de um dragão.O dragão, menor que a palma da mão do pequeno rei, mais dourado que ouro e com os olhos mais verdes que esmeraldas, abriu sua minúscula boca e dela veio um cheiro de fumaça e morte. Suas palavras não eram inteligíveis, apenas grunhidos, mas dentro da cabeça do rei-menino elas faziam sentido.Ele explicava que havia sido glorioso em nosso mundo e que agora se encontrava em outro plano, mas próximo ao nosso, e que gostava de voar livre e assassinar seres inferiores. Disse que um dia imergeria do fundo das águas causando um enorme maremoto e ascenderia ao céus carregando em suas costas um rei-morto.O pequeno rei sentia lágrimas humidecerem seu rosto ao perceber o quanto o dragão apreciava sua vida "Ai quem dera eu gostasse tanto de ser rei, quanto esse ser gosta de ser um dragão", se lamentava. Mas sua inveja logo se dissipou, pois o hóspede de seu jardim disse estar condenado à morte prematura e terrível. O farfalhar de borboletas irrompeu tão violento que o minúsculo dragão parecia prestes a explodir. O rei pequenino tomado de misericórdia, pois apesar de ganancioso e altivo possuia alguma simpatia por um ou outro ser, prometeu dar asilo ao pobre dragão. A boca dourada então contou que o pájem da esposa mais jovem do rei haveria de matá-lo naquela noite.Sem questionar-pois jamais se questiona um dragão- o rei partiu e mandou que lhes levassem ao seu aposento o jovem págem. Em duas horas(era imenso o palácio) o jovem raquítico e visivelmente amedrontado foi lançado pela porta. O rei menino pediu que ele se sentasse junto dele na cama, e disse que gostaria que os dois fossem como irmãos e amantes aquela noite.Para o rei era inevitável abusar de seu poder, e percebeu que para salvar o dragão, seria preciso colocar o pequeno jovem ao seu dispor. Nas duas primeiras horas, o rei e o págem sorriam tímidos um para o outro e brincavam de jogos de tabuleiro, nas seguintes três horas, o rei corria os dedos pelo cabelo do págem e contava para ele de suas boas qualidades e de suas aventuras inventadas(o dragão jamais fora mencionado), nas quartas e quintas horas, o rei obrigou o págem a se despir e deitar-se no chão gélido de pedra, e as gargalhadas do tirano eram escutadas por todos os cômodos como uma voz fantasmagórica, nas sextas horas, o rei-menino também se despiu e chamou o págem para junto de si, afim de que com o seu calor, fizesse com que seus calafrios fossem embora. Eles então se deitaram juntos como homem e mulher se deitariam, e as horas não mais foram contadas pois ambos caíram em sono profundo.À meia-noite, a hora mística, um enorme trovão estremesse o palácio, e pela janela de seu aposento, o rei, tomado de pânico, vê um rajão dourado cair do céus. O coração do pequeno rei fica menor e ele sabe que seu dragão está morto. Após três horas, dois de seus guardas surgem no aposento real carregando uma enorme cabeça ensanguentada, a língua pendente, os olhos vidrados. O rei não mostra surpresa, nem tampouco tristeza, e ordena que a enterrem no jardim próximo à uma fonte específica das duzentas idênticas. Os guardas partem sem questionar-pois jamais se questiona um rei.O págem acorda logo após a partida dos guardas, ainda atordoado e com um pouco de frio, sua voz, até então desconhecida pelo rei, é infantilizada e amendoada: "Meu rei, permita-me contar-lhe o melhor sonho que tive", o rei-menino ascena a mão com desdém para que o jovem prossiga "Sonhei que andava pela relva de um mundo parecido com o nosso, meu corpo era saudável e musculoso, meu cabelo era longo e loiro e eu o sentia macio roçar os meus braços. Em uma das mão carregava uma espada com um emblema que não consigo me lembrar...e dos vêm vindo em minha direção um enorme dragão dourado, seu hálito fede à carnificina e seus olhos são amaldiçoados. Com um único golpe, o corpo todo excitado, decepo a cabeça do dragão e ainda quando acordei podia sentir o sangue quente banhar a minha pele".

Conto: O Chuveiro Queimado

Haviam guerras, pessoas aleijadas, pessoas moribundas. Seu vizinho, o Seu Marcos, por exemplo, estava sendo carcomido pelo cancêr. Se prostrava em sua cadeira de rodas com o olhar resignado de um boi no abatedouro enquanto sua família o dava adeus todos os dias. O aceno débil do seu Marcos na ida pro trabalho tornava as suas manhãs insuportavelmente mais frias.Estava um frio de doer. Haviam mendigos sem agasalho. Gente dormindo em sua própria urina, crianças chorando de desnutrição, mais parecidas com pequenos alienígenas do que com humanos, a cabeça desproporcional, os braços, ossinhos compridos pendendo de uma caixa toráxica feita só de pele e de costelas.Ela dormira bem, comera bem. Não havia o barulho das bombas cortando o ar, nem doenças terminais sem cura. Não havia contas a pagar, nem um bebê chorando diante um peito murcho e sem leite. Sua casa tinha as paredes gentilmente pintadas e o chão de taco cuidadosamente polido. Suas roupas perfumadas e limpas deitavam-se sobre o sofá como pequenos cadáveres de tecido. Era uma manhã perfeita, daquelas cheia de sol mas como estava frio.Em momento algum ela estava alheia. Sabia o tempo todo da infinitesimal importância de seus problemas para o mundo. Sabia que nunca teria para quem os contar. Alguém que se simpatizasse com eles. Com ela. A moça de classe média que tinha um bom trabalho e uma vida solitária. Provavelmente atribuiriam tudo ao seu gênio difícil. Julgariam- na como se a conhecem intimamente, dizendo que ela sofria por puro egoísmo.Pensava se por devaneio deveria engolir os problemas por os merecer, por estar destinada a tê-los sozinha, se inventava sofrimento. Cogitava estar enlouquecendo. Afinal, hoje era um dia frio, e debaixo da água gelada, ela chorava nua e desprotegida como um recém-nascido... se sentia terrivelmente só.Da cozinha vinha a tosse da sua avó que estava resfriada... como não poderia estar? Era inverno e as duas estavam tomando banho de "água esquentada no fogão" há duas semanas. Por quê essa ausência de homens na casa. O retrato do avô sorrindo na parede... e nenhuma palavra dita. Os olhares trocados entre ela e a avó, olhares que queriam dizer "aquele cretino do seu ex namorado resolveria isso em dois tempos". Uma promessa feita pelo irmão mais velho de socorrer a jovem e a velha dama.Mas só as duas. Há dias. Chegada a hora de sair debaixo da coberta, ela fitava aquele monstro branco e pescoçudo da incapacidade. Se sentia tão frágil que quase se quebrou. Humilhada. Não sabia fazer "pequenos reparos" apenas assinar cheques, a promessa pendente. A espera. O pai que nunca teve. Os irmãos longe dali. O ex namorado que a havia ganhado com pequenas gentilezas masculinas para depois arrancar o seu coração. O pai(ausente). O avô(morto antes que ela nascesse). Os irmãos(casados). O homem(que a assassinara um pouco). E o chuveiro. O fantasma de plástico.A precavida mãe a havia educado para jamais esperar gentileza dos homens. Para fazer tudo sozinha. Para se sentir forte e independente.(Autosuficiente, as vezes). E assim ela se foi... acreditando na mãe... e mascarando a dor com os seus ofícios. Dizendo a si mesma que não tinha tempo pra nada.(Para o romance). (Para uma família). Veio o chuveiro como o diagnóstico do Seu Marcos. O chuveiro foi como o dia em que os médicos pararam de cuidar dele e o deixaram morrer em casa. O chuveiro, altivo, inalcançável, cheio de fios misteriosos...a tomava, quase em um estupro. Gritava: "você precisa de alguém", "onde está o seu pai, o seu amante?", "você pode comprar o amor e a vontade de protejer?"...e ela lutou. Abriu a água no máximo, respirou fundo e sofregamente se pôs debaixo da água gelada. O ar gelado. O corpo gelado. O coração. Só as lágrimas escorriam quentes.Debaixo do chuveiro queimado ela sabia das guerras, das moléstias, da fome e das injustiças. Mas sabia também de si, uma menina. Sozinha. Mimada. Incompreendida. Lutando com a água na manhã fria de in(f)verno. Lutando com a solidão. Com o rancor. Com a inveja de seus irmãos que tinham as suas famílias. Com a vitimação. Mas o seu choro era sôfrego e sua dor legítima, mais dor e mais forte por não poder dizer "Sofro porque o meu chuveiro queimou". Ela soluçava e tremia... achou que ia morrer de tanta tristeza. A infelicidade personificada em forma da água gelada. Com o banho matinal veio a constatação de que ela não era uma pessoa feliz."-Vovó?! Você poderia chamar um bombeiro hidráulico para nós?!"- disse e depositou com cuidado algum dinheiro sobre a mesa-"o banho frio está nos deixando resfriadas. A gente não conta pro irmão!". Beijou as bochechas murchas e saiu.

Conto: O Picadeiro

Acordou aquela manhã com o coração em chamas. Estava pesado demais para o seu peito. Pesava como se o povo de Faery dormisse sobre seu tórax esperando o advento da manhã para lhe roubar uma das crianças.Ao invés de assar o pão de ontem com uma colher de margarina e passar o solitário café preto e forte de antes de ir pro escritório, olhou pela janela manchada de cinza do apartamento. O circo se estendia a poucos metros dali. A lona, um arco íris dentre os prédios. A alegria completamente alienígena daquelas cores em contraste com a cidade.Fechou os olhos e se lembrou do sons do picadeiro. O rugido enorme do leão que fazia tremer por dentro e deixava suas pernas magricelas de menino bambas, a voz marcante do apresentador, as gargalhadas irônicas do palhaço.Os palhaços não eram autênticamente felizes. Eles estavam entre ser bicho e ser gente, como as outras aberrações, a mulher barbada, a mais gorda do mundo, o homem lobo, a mulher gorila e até mesmo os desengonçados anões. Gente de circo.No escritório, ele também se confundia..por vezes era o homem cálculos e relatórios. Tão ironicamente misturado com seu ofício que também sofria de cálculo, a dor pungente e chata nos rins. Raramente perguntavam seu nome ou como havia sido seu dia, queriam saber dos memorandos e papéis. Rá! Papéis. Zé que é Palhaço Brigadeiro, Teodoro que teve um filho que não sabe o nome, e que põe no rosto sofrido de homem velho e soliário, carregando consigo aquela lembrança daquele único amor, uma máscara sorridente que magicamente o torna outro, criança de novo, Palhaço Beringela.Com um suspiro puxa a gaveta da cozinha e a faca de corte. Com ela, rasga o peito e enfia a mão dentro e agora segura um coração palpitante como um passarinho, quente e pulsando frágil, frágil. Segura com cuidado para não apertar muito. O pijama, agora rubro, foi transformado magicamente do amarelo doente em trajes salpicados de vermelho, mais escuro no meio e mais claro a medida que se afastavam do lugar onde antes era seu peito fechado, e que agora se abria em flor.Foi um pouco difícil abrir as portas usando uma mão só e andar até o circo também foi penoso pois o chinelo estava uma poça escorregadia. O tempo todo ele tinha que conter a vontade de correr até o circo com um sorriso aberto e os olhos brilhantes, mostrando o que tinha em suas mãos.Uma dona deixou cair as compras mas ele não pode se abaixar para ajudá-la. Olhar acusador. Nem ao menos havia lhe notado as mãos ocupadas. Ele era invisível como o habitual, mesmo em seus trajes novos, por sua vez, as outras pessoas também eram invisíveis, aquele momento era só dele.Assim, ele pôde virar com desprezo o seu rosto e combinou consigo mesmo de não párar por mais ninguém.A fila da bilheteria era pequena, e só ao chegar a sua vez foi se lembrar que não havia trazido dinheiro. Não precisou dizer nada, do outro lado da gradinha abriu-se um sorriso compalcente e lhe foi empurrado um ingresso "Cuidado com isso que você carrega, hein e evite sujar o ingresso, precisamos reaproveitá-lo na próxima noite, não estamos ganhando muito, você sabe!". Ele acenou com a cabeça para mostrar que havia entendido o pedido, e mostrou os dentes em um gesto meio adoentado.Sentou-se lá no fundo, mas mesmo assim se sentiu nú, pois na arquibancada, projetada para cinquenta espectadores, não se sentavam mais do que quinze.Os tambores rufaram e ele pela primeira vez viu, com seus olhos, o pequeno coração(pequeno para um homem da sua idade, certamente deve ter murchado um pouco) bater mais forte, quase saltando das palmas de suas mãos.Então, com um grito profundo, ele atirou seu coração às areias do circo. Ele caiu bem no meio do picadeiro, causando um pequeno levantar de poeira. Alguém espirrou ou tossiu. O leão limitou-se a farejar e desprezar o pedaço de carne. O trapezista sorriu.Os palhaços zombaram daquela atitude desesperada.Só a pequena bailarina compreendeu. E veio caminhando com seu olhar melancólico e os passos medidos. A pequena bailarina não era mais que uma menina, no entanto, a mais delicada das mulheres. Uma mulher-menina de porcelana, um bibelô sensível. Com as mãos em concha apanhou o coração. O sangue lhe manchava as luvas brancas de carmina.Naquelas pequenas mãos de opala, o coração se tornou magia. A arquibancada vazia se encheu, as crianças brincavam na rua, podia se ver as nuvens de Outono quando se olhava para o céu. A cidade e seus arranha-céus haviam ido embora e o circo deixara de ser nômade. Lá fora, brincadeiras de peão, de rouba-bandeira, cachorros latindo, um homem acenando de sua carroça. Donas conversando nos portões, alguém vendendo pão, outro assobiando.Demourou-se um pouco para que ele aprendesse a vestir com razoável destreza, os risos da hiena, a frágil polidez dos elefantes e a elegância marinha dos corcéis. Antes vieram os tombos, as frustrações.Porém, quando o espetáculo acaba, a noite alta, as pessoas cantarolando. Quando as luzes se apagam, e o leão boceja, o palhaço tira a sua maquiagem e a bailarina cessa seus rodopios...é quando o picadeiro dá lugar à outro tipo de mágico. Um mágico com um buraco no peito. Ele abre seus braços e como já não tem o coração lhe pesando, ele voa. Vai para um mundo onde não há espelhos falsos e o sol devolve a cada coisa a sua sombra natural. Nesse mundo não há o aplauso, porque tudo é justo. Porque tudo é bom.

Conto: Amor e Morte

O olhar de um boi na fila do abatedouro, resignado, com um infantil apego à vida mas caminhando resignadamente na fila, a promessa da martelada em sua cabeça larga no final. Era essa a impressão que se tinha sobre ela e seus olhos grandes enfiados demais naquele rosto demasiadamente raquítico, os ossos das bochechas saltando da face.Não era de se admirar que aos dezenove anos se apaixonasse por um viúvo. Nunca havia sido tratada bem pelos três irmãos mais novos, muito menos pelo pai, que a obrigava à cuidar da casa desde que sua mãe havia se ferido moendo cana e ficara com a mão esquerda parecido com a pata de um passarinho, os dedos afastados e tortos, mais longos por causa dos ossos esmagados. O primeiro homem que a fez sorrir, a fez também se sentir amada.Ela de fato se sabia amada, e vivia a cantarolar enquanto lhe engomava as camisas. A cama dos dois cheirava à falecida e ela não se importava... se sentia viva! Era ela que estava ali afinal. Não gostava de mexer em nada na casa, nem ao menos mudar a mobília de lugar, por receio de desagradar ao marido e aos filhos deles(dele e da outra, que é a primeira), afinal, eles se silenciaram quando os dois quiseram se casar.O marido, para agradá-la, jamais mencionava a sua morta, ainda que a foto dos dois, e ela sorridente carregando o primogênito pendesse como um grito gigantesco da parede da sala e a envergonhando quando alguma pobre alma resolvia visitá-la. Seus irmãos, agora mais velhos, continuavam cruéis como crianças e viviam à amolar dizendo que feia do jeito que era tinha tirado a sorte grande ao se casar com um viúvo rico e (bem)mais velho.Deus não havia lhes presentedo com filhos, por mais que tentassem, e ela acabou ficando velha demais para isso. Na verdade, a mãe dela não havia mesmo prestado depois do acidente(ela tinha apenas dez anos quando o pai chegou com a mãe ensanguentada e chorosa), e o amor parecia ser aquilo dali, lavar as vasilhas, dormir na mesma cama, cuidar das refeições, igual o que o pai dizia que a mãe fazia tão bem quando ainda podia. O pai dizia isso chingando, dizendo que ela, como filha, era uma desgraça e não sabia cuidar dele e dos irmãos. Ah se o pai à visse agora, esticando com zelo o forro bordado da mesa, de ponto tão delicado... o cheiro do bolo perfumando a casa.Ah se o pai visse as flores que o marido trouxera, rosas vermelhas, como se eles ainda estivessem na fase do flerte depois de vários anos de casados. O branco do cós do pano de mesa, o vermelho sangue das rosas. Ela achou que era o contraste mais mimoso que havia visto na vida!Talvez por timidez ou falta de jeito em viver, ele não havia lhe falado nada, mas as flores estavam ali como que para compensar a falta de palavras. Eles tomaram juntos o lanche e a noitinha ela passou a colônia favorita e vestiu a camisola de renda bem soltinha, deixando ver sob o tecido dois mamilos rijos e delicados. Os cabelos soltos lhe caiam como galhos de parreira, volumosos, cor de avelã. Ela se sentia verdadeiramente bonita.Ele a beijou sôfregamente, e ela pôde sentir pelo cheiro dos pêlos dele que ele a desejava ardentemente e os dois fizeram amor mais como dois amantes sujos do que como marido e mulher. O quarto e os lençóis da outra se cobriram com suor e outros líquidos...e os dois nus, estirados como dois vermes sobre a cama, sem ao menos cobrirem os pudores. Estavam exaustos. Dentro de si ela guardou um sorriso de malícia, tocando o próprio lábio onde o mesmo nascera.Quando o escuro se despedia, e o quarto se tingia do azul das quatro e meia, ela escutou um barulho como se um bichinho tivesse ao seu lado, um filhotinho de gato talvez, um chiadinho bem baixo, que foi crescendo, crescendo... por um momento ela achou que fosse uma assombração, o fantasma da outra querendo resgatar o que era dela. Quando teve coragem, o som já era estridente, ela abriu os olhos, o rosto do marido desfigurado em uma careta:"As flores eram para ela!", ele disse.

Conto: As Duas Amigas

A velha contemplava o sofá e aos poucos ia se permitindo ser saudosista, assim como às vezes colocamos um cigarro na boca junto com o gosto da liberdade de ser. Lembrava de quando a mobília ainda tinha cor e ela tinha homens. Hoje, ela só tem a gata. Uma tem a outra.Mas as coisas vão perdendo o prazer e vai se perdendo o prazer das coisas. A gata e a velha já nem mais conversavam. As quatro horas a comida era despejada na vasilha e a gata sabia que, quando se deitasse perto da velha ela lhe correria na barriga as mãos. Não havia nojo entre elas. A gata por vezes assistia a sua dona no banheiro e elas se beijavam mesmo que uma das duas amigas fizesse seus banhos com a língua suja de rato e pasta de atum. A carne da geladeira por vezes ficava roxa e ainda assim era comida para não ter desperdício. Gostavam de iogurte de morango pela manhã.À gata havia sido negado um nome, em um dia de pura crueldade. A velha tinha esperado muito por alguém e como essa pessoa nunca chamou o seu nome de novo assim, vingou-se na própria gata, na época um bichinho de nada. Quando a sobrinha lhe perguntou o nome daquele pacote de pêlo, ela disse simplesmente "gata" e de seu lábio gotejou um sorriso malicioso que certamente a deixou mais moça.Mas a gata era macia e tolerante. Seus bigodinhos eram engraçados e ela nunca permitia que os ratos entrassem dentro da casa. A velha foi tomando um amor pela criatura, que a tratava com a consideração que se deve ter por um ser humano, mesmo que não tivesse ela um nome para si.A gata era esbelta e conseguia fugir das travessuras dos meninos das vizinhas. Já a velha, que era mais frágil e débil, sofria muito por ser chamada de bruxa(no fundo ela adorava crianças) e tinha sempre que engolir a vontade de dar a garotada alguns tostões para limpar o quintal.A casa toda não tinha nada de valioso, a não ser a memória, e era rodeada só por uma cerca de arame farpado. O mato grande dava mesmo ao lote um aspecto de abandono. A grande mesa de madeira e algumas cadeiras velhas apodreciam em meio a garrafas e entulhos deixados por mendigos(que por vezes dormiam no quintal).A anfitriã os observava -sempre com receio- da janela da sala, e como sua expressão era doce, eles nunca a feriam ou usavam o quintal para obscenidades e escatologias. Na verdade, o que a velha gostava, era de ficar observando as garrafas: vaga-lumes azuis, marrons e verdes reluzindo, reluzindo na noite preta.Uma vez por mês ela recebia uma visita de verdade, uma especial. A sobrinha Agnes. Arrumava a mesa com flores e comprava pão novo. Quando mais saudável fritava pastéis. Agnes e ela se divertiam como duas moçinhas. Contavam muitas histórias. E a velha sabia que a sobrinha a visitava secretamente, sem os meninos e o marido, para poder se permitir ser criança de novo.Por vezes elas faziam brincadeiras, como origami e papel machê. Ou então, jogavam baralho valendo cigarros ou um gole de bebida(a mais nova sempre se empenhava muito para ganhar por causa da saúde da tia). A colônia da tia tinha um cheirinho bom, misturado com velhice mas que fazia lembrar de como ela foi bonita de um jeito exclusivamente seu. E com os olhos de menina, Agnes- cordeiro em Latim- via aquela tia sem rugas, com seu rosto cheinho e o cabelo de favo de mel, sorrindo como se ainda tivesse todos os dentes.Um dia caiu muita chuva e por toda a casa se escutava o plic plic plic das goteiras enchendo os baldes. O mato virou um brejo e os ratos sumiram por um tempo, deixando a gata um pouco mais carente e gulosa do que o habitual. A velha sentiu uma vontade egoísta lhe crescer dentro da barriga, uma vontade de se mudar para uma casa menor e melhor. De deixar a gata. Mas quando ela olhou para as pernas, e sentiu o roçar, os olhos grandes, um pouco mais magra, seu coração se encheu tanto de amor que chegou a doer. E nos outros dias de chuva ela nem mesmo se importou dos baldes transbordarem. Vai ter mais pernilongo picando a meninada!- se consolava.Quando a gata morreu fazia um sol de dar dó. Os ratos já tinham até voltado aos entulhos. A velha sofreu tanto que murchou. Chorou. Nem assistiu a novela. Nem olhou, lá fora, os casulos de mariposa da roseira selvagem. Quis ficar doente. Deixou de tomar o remédio e dormiu oito dias sem cobertor.Mas poucas pessoas são donas da sua própria Hora e não foi diferente com ela. Agnes viu a tia tão amuada e fraca que aos poucos parou de visitá-la. A tia não a censurava pois nunca gostou do cheiro que a velhice lhe deu. E também sabia que as pessoas têm suas próprias vidas, e as pessoas que elas criam costumam ser a vida delas. Ela só havia criado a gata e o mato. Aquele casarão de cerca e móveis desbotados. Tinha consciência de seu temperamento difícil e das coisas que preferiu cultivar ao invés de cultivar gente.Decidiu escrever um testamento. Sabendo que a sobrinha vivia em uma casa muito na cidade, espremida, deixou à ela tudo que tinha. A casa, afinal, era grande e o quintal se bem cuidado viraria um ótimo lugar para os filhos brincarem.No mesmo ano Agnes se mudou. Mais pela tia morta do que por ela mesma, que antes estava só a dois quarteirões do trabalho. Tiveram que vender muita coisa para reformar a casa, mas no final, ela ficou tão boa e alegre, que deu à sua caçula o mesmo nome da tia(que nem era um nome bonito). Nem se lembrava que houve uma gata um dia.

Conto: Papel Acobreado

As vozes familiares vindas da sala inumdavam os ouvidos.Doçura de se sentir em casa. E a janela aberta trazendo um pouco de vento. Um pouco de luz.As coisas sobre a escrivaninha emitiam as mesmas sombras de sempre, exceto pelo porta-retrato com a foto da última neta, um presente.Não estava sozinha, mas buscava um isolamento. Um relampejo de malícia lhe correu por sobre os lábios murchos. Só meu o momento, o quero só para mim.O quarto de escrever era um útero, seu e da mãe ao mesmo tempo. Só que sem o cheiro de sangue.Cheirava à ela. Colônia adocicada de moça misturada com o cheiro da velhice. A sua própria.Olhando as unhas pintadas de rosa se estranhava por não reconhecer mais as manchas senis. A pele um relógio. Como o papel dos primeiros contos que se amarelava.Agora ea era uma folha, quase cobre, prestes a rasgar com o movimento de passar as páginas, ainda que suave.Um livro grosso. A mente a relia, evitando ser nostálgica, naquele que era o seu momento particular, e não queria pecar em se sentir melancólica."Cadê a vovó?" ela escuta. Sorri como uma menina marota.A escolha de subir até o quarto de escrever já havia selado a despedida. Ela seria assim, sem adeus, só dela.Nas mãos os escapulário e o medo infantil de ser avisada três dias antes de quando ia morrer.Ainda não sabia sobre o Deus, ainda não fazia idéia de como seria depois, mas ela queria a Hora.Cansaço. Não conseguia escrever. Era o momento da epifâne.E haviam as coisas que tornavam doloroso continuar.Queria poder voltar. Achar um lugar de reconhecer a si mesma em cada objeto ou marca na madeira, um copo de bebida, risco, corte. Os pingos de um cabelo molhado quando ainda era dourado. E ela ainda um pouco selvagem.O gato, o cúmplice. O gato. Sem nome, pois já houveram muitos e a criatividade se foi. Eles também não precisavam ser chamados, eram parte dela.O ronronar se confudia com sua própria voz.Ele dormia na cômoda como sua existência simples permitia...apenas existir. E ter somente pequenos vínculos... mais ser do que sentir, na verdade. Ela, era a parte que sentia.Um gosto lhe sobe a boca e ela começa a derreter. Se torna tudo ali, se torna lembrança.