domingo, 20 de outubro de 2013

Ciclos

Encolhida, e, com a urgência de proteger as costas, me encaixo em posição fetal em cada pedaço do corpo dele que está todo escondido pelo cobertor. A respiração, o subir e descer calmo e ritmado, o braço repousado sobre mim, é o maior acalanto que o mundo poderia ser. Ele me conhece. Ficamos assim, encaixados, lado a lado, como duas mariposas em um casulo de lã, mas não esperamos uma mutação, apenas congelamos o tempo.
E eu suspiro e digo que quando ela morreu, morreu parte de mim. “Ela não era um outro, ela era parte de mim, como se fosse um braço, ou uma perna”(estamos falando de um gato, ou melhor, uma gata, que por  14 anos, antes de vislumbrar conhecê-lo, já era minha, já era um dos meus amores). “ E provavelmente algo seu realmente morreu com ela, mas o ciclo se completou e vocês duas fizeram o que tinham que fazer juntas”, ele diz, gentileza em sua voz, que tem um tom amendoado.

Ao acordar pensei como é lícito ao amor esses lugares-comuns, “morrer parte de si”, “destituir algo perdido, completar”, esse ciclo constante de re-significações, de coisas tão delicadas que se quebram com um sopro, com um veneno, com o tempo implacável ou com um silêncio. Suspiro e penso que o coração precisa ser volúvel caso contrário se empedra.  Aos poucos vou aprendendo a ser esse novo eu, sem ela, sem minha mãe, com uma vista diferente da janela do quarto, com novos amigos, com novas feridas em cicatrização mas com um corte de cabelo novo. 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Picadeiro(nova versão)

Acordou e seu coração estava em chamas. Pesava demais para o seu peito. Pesava como se uma fada dormisse sobre seu tórax esperando a manhã para roubar-lhe uma criança humana.
Ao invés de assar o pão-de-ontem com uma colher de margarina e passar o solitário café preto e forte de antes de ir para o escritório, olhou pela janela enegrecida de fuligem do apartamento.
O circo se estendia a poucos metros dali. A lona, um arco íris dentre os prédios. A alegria completamente alienígena daquelas cores em contraste com a cidade.
Fechou os olhos e se lembrou dos sons do picadeiro:
O rugido enorme do leão que fazia tremer por dentro e deixava suas pernas magricelas de menino bambas, a voz marcante do apresentador, as gargalhadas irônicas do palhaço.
Os palhaços não eram autênticamente felizes. Eles estavam entre ser bicho e ser gente, assim como as outras aberrações, a mulher barbada, a mais gorda do mundo, o homem lobo, a mulher gorila e até mesmo os desengonçados anões.
Gente de circo.
No escritório, ele também se confundia... Por vezes era o homem cálculos e relatórios. Tão ironicamente misturado com seu ofício que também sofria de cálculo, a dor pungente e chata nos rins.
Raramente perguntavam seu nome ou como havia sido seu dia, queriam é saber dos memorandos e papéis. Papéis.
Zé que é Palhaço Brigadeiro... Teodoro que teve um filho que não sabe o nome, e que põe no rosto desgastado, carregando consigo aquela lembrança daquele único amor, uma máscara tão sorridente que magicamente o torna outro: Palhaço Beringela.
Suspira. Desiste completamente do café. Puxa a gaveta da cozinha e tira a faca de corte.
Com ela rasga o peito e enfia a mão dentro e agora segura um coração palpitante como um bichinho recém-nascido, quente e pulsante frágil, frágil.
Segura com cuidado para não apertar muito.
O pijama fora transformado magicamente de um amarelo doente em um traje salpicado de vermelho, mais escuro no meio e mais claro à medida que se afastasse do lugar onde antes era seu peito fechado e onde agora se abria uma enorme boca.
Foi um pouco difícil abrir as portas usando uma mão só e andar até o circo também foi penoso: seu chinelo estava uma poça enorme.
O tempo todo ele tinha que conter a vontade de correr até o circo com um sorriso aberto e os olhos brilhantes, mostrando o que tinha em suas mãos. Isso seria uma excentricidade que arruinaria a suavidade do seu gesto.
Uma dona deixou cair as compras, mas ele não pode se abaixar para ajudá-la. Olhar acusador. Nem ao menos havia lhe notado as mãos ocupadas.
Ele era invisível como o habitual, mesmo em seus trajes novos. Por sua vez, as outras pessoas também eram invisíveis- aquele momento era somente dele. Assim sendo, se permitiu virar com desprezo o seu rosto e combinou consigo mesmo de não párar por mais ninguém.
A fila da bilheteria era pequena.
Ao chegar a sua vez foi se lembrar de que não havia trazido dinheiro.
Não precisou dizer nada, do outro lado da gradinha abriu-se um sorriso compalcente e lhe foi empurrado um ingresso: "Cuidado com isso que você carrega, hein e evite sujar o ingresso, precisamos reaproveitá-lo na próxima noite, não estamos ganhando muito, você sabe!".
Ele acenou acertivamente com a cabeça e mostrou os dentes em um esboço de sorriso meio adoentado, meio sem jeito. Sentou-se lá no fundo, mas mesmo assim se sentiu nú, pois na arquibancada, projetada para cinquenta espectadores, não se sentavam mais do que quinze.
Os tambores rufaram e ele pela primeira vez viu, com seus olhos, o pequeno coração (pequeno para um homem da sua idade, certamente deve ter murchado um pouco) bater mais forte, quase saltando das palmas de suas mãos.
Então, com um grito profundo, ele atirou seu coração às areias do circo. Ele caiu bem no meio do picadeiro, causando um pequeno levantar de poeira.


Para Paulo Paes. Inspirado por Poema Circense.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Dust to dust


Hoje sonhei com a minha vó. Um sonho cheio de símbolos: estávamos na casa velha, a casa dela, no ponto em que a divisória com os vizinhos, um loteamento vazio, era apenas uma cerquinha de arame de vários hexágonos casados . E havia um homem, severo, enxugando as gotas de suor com as costas das mãos enquanto cortava lenha nesse lote. A lenha que ele cortava era do enorme pé de amora que se erguia altivo no centro desse lote como se desafiasse a molecada a roubá-lhe os frutos. Junto do homem um garotinho, novo demais para auxiliá-lo, apenas observava a labuta do homem que diria ser seu pai.
Surpreso com os meus olhos pousados sobre eles, em um misto de impaciência e gentileza, ele, obviamente tímido, para desviar a minha atenção do que ele e o garoto faziam, pára o trabalho apoiando os cotovelos sobre o cabo do machado que subtamente havia se transformado em uma enxada e me pergunta, como se mandasse embora se "aquela alí não era a minha vó", o "ali" indicado com um sutil movimento do queixo. Eu respondo que sim antes mesmo de olhar e quando me viro para a dieção indicada pelo misterioso homem, o lugar onde havia sido o fogão de lenha(da única foto em que meus pais estão abraçados e felizes) se precipita um monte de terra. O cheiro de folha seca e húmus vem me imediatamente às narinas e meus ouvidos escutam o som da enxada de volta ao trabalho. 
Do morro de terra, em um suposto aparato de contenção da terra, ou para transformar aquela área em um jardim, caem umas telhas bem alaranjadas e novinhas diferente da atmosfera do lugar em si onde tudo cheirava a mausoléus antigos e terra, a própria origem da vida. Procuro com os olhos o que se encontra depois do morro de terra e vejo a minha vó: uma enorme e frondosa árvore, uma árvore centenária, o tronco enorme e cheio de cascas. As cascas são como rugas, e aquela avó ao contrário da avó da Pocahontas, era somente a árvore. Respondo ao homem, sem que me atreva a olhar pra ele novamente, ou respondo a eu mesma mais uma vez que é ela sim(e que havia morrido há muito tempo). Somente o som da enxada vem do outro lote. Eu me aproximo, escalando o pequeno morro, a terra fofa e as folhas sibilando nos meus pés e os sugando para dentro dela, como a areia faz no lugar onde a onda toca.
A avó-árvore abre os olhos e chora, eu a abraço e choramos juntas, um choro feliz, um choro de encontro. O choro diz por nós. O choro diz por mim: "olha vó, eu cresci, sou uma mulher casada e já aprendi a cuidar da casa" e o choro dela diz por ela: "estou orgulhosa de você e sinto saudades".
Depois desse sonho sei como explicar para o meu marido porquê quero ser enterrada no jazigo junto dos meus antepassados.