terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Conto: Senhor Bigodes

Bill e eu não nos falamos direito desde o acidente. Ele tem bebido todos os dias e o meu sono se tornou muito leve. Escuto o clac clac da lata de cerveja e o jato de urina de Bill caindo na água depois de exatos dez minutos. Nossa casa não é muito grande, sabe. O suor dele se tornou amargo com a levedura, e todos os lençóis têm uma mancha amarelada, como se fosse o contorno feito em giz em um cadáver. Essa noite a Emily voltou a "fazer pipi" na cama. Ela já tem cinco anos, meu Deus!... aqueles olhinhos cheios de culpa e eu exausta, nem ao menos respondi o "me decupa, mamãe". Maldito gato. Se não fosse o maldito Senhor Bigodes não teríamos, o Bill não teria tido que...Olho as estrelas do lado de fora do trailer. Daqui a quatro horas estarei fritando batatas, o cheiro da gordura velha entupindo o meu nariz, as risadas dos casais felizes e extravagantes vindo das mesas...danço com a mão no ar enquanto sopro a fumaça do cigarro fazendo em forma de círculos...a ponta dos meus dedos está ficando cada vez mais amarela por causa da nicotina, eu também tenho fumado muito mais. O meu hálito não deve estar tão agradável para o Bill, ele também não tem me procurado. Tento me concentrar no céu aberto. O bichinho verde está dependurado na janela da Emily de onde vem uma claridade translúcida. Procuro não olhar para o pedaço de madeira cheio do cérebro do Senhor Bigodes encostado debaixo da janela, mas meus olhos estão lá, procurando os pedaços ensaguentados de miolo de gato, chapiscados de pêlos marroms.Resolvi caminhar então. Perto do trailer tem uma dúzia de árvores...as folhas cobrem o chão que virou uma massa fofa de folhas antigas, como um grande edredon. Se não fossem os insetos eu me deitaria ali mesmo. Bill abre a porta do trailer e me acena, a lata de cerveja na mão, para em seguida fechá-la mais uma vez.Estou sozinha...acendo mais um cigarro e enconsto na árvore, roçando os meus pés um no outro para me coçar das picadas. Tenho a impressão de ter visto um pequeno rabo. Um rabo amarelado... só então noto o cheiro. A barriga aberta do Senhor Bigodes. O gosto da sopa do jantar me sobe a boca. Aquele desgraçado do Bill. A pobre Emily poderia ter achado ele aqui. Resolvo eu mesma jogá-lo em um buraco. Escuto o ronco do Bill enquanto furo a terra. O cheiro da terra é agradável.
Quando toco o Senhor Bigodes com a pá ele se levanta. Um pouco trôpego, como se fosse um velho bêbado. A orelha pendendo por um pequeno fio do resto de carne amassada que antes era o seu crânio._ Bom dia Jade.-diz Bigodes com sua cabeça pendendo da esquerda para a direita, como a de um bebê recém-nascido forçado a ficar ereto- Preciso de um favor.Os dois olhos mortos fitam a minha máscara de pavor. O cigarro me queima o dedo. Mas só consigo me fixar naqueles olhos, um deles parcialmente vazado. Ele era um gato bonito, penso.Senhor Bigodes senta, e com um miado profundo de dor chama alguém ou alguma coisa. De dentro da mata saí um pequeno filhote. Um filhote de jaguar. A barriga maior do que o corpo...a cabeça demasiadamente grande._Este é Taralonamon, um deus felino. Seus dentes são poderosos e esmagariam o corpo inteiro de um homem. Seu hálito causa náuseas à qualquer um que o sinta a um quilômetro de distância. Semana passada tentei avisar Emily que ele nos visitaria, foi quando seu marido me assassinou brutalmente. A pequena Emily é mais estúpida do que pensei... achei que entenderia o que eu estava desenhando no lençol.Eu tentava falar, tentava olhar o deus gato, mas minha vista se desfazia, era como se a fumaça do meu cigarro estivesse enchendo os meus olhos de lágrimas._Taralonamon veio para me avisar da minha própria morte, mas também para me conceder a graça de lhe pedir para salvar a vida dele e de seu marido. Quando o sol terminar de surgir, você precisa ficar no trailer, na casa. E empedir que Bill saia, pois ele irá atropelar Taralonamon pela manhã. E os dois vão morrer. E eu terei morrido brutalmente e em vão, já que um berseck sempre morre por seus donos. Assim é desde o nascer do Egito, desde antes das sete pragas e assim deverá ser por todos os tempos.Bill acorda as oito. Eu nem ao menos consegui dormir. As sete e meia a Emily foi para a creche junto com a Dalila. A mãe estranhou o meu aspecto. Só então percebi que meu cabelo estava cheio de terra e embarassado. Ela me perguntou se eu queria que ela ligasse para o meu trabalho...eu disse que não adiantava mas agradeci. Falta é sinônimo de demissão na grande rede de fast food. Então, tomei um banho e vesti a minha melhor lingerie. A que eu usava antes da Emily quando ainda era stripper. Eu sabia o que viria em seguida.Bill não fala nada. Seus dentes são mais brancos do que os meus...engulo os resíduos do que ele comeu na noite anterior que ainda estavam em sua língua, mas se ele me beijou é um bom sinal. Ele não vai me bater muito hoje. Bill está ofegante sobre mim agora. O feche da almofada está arranhando a minha barriga, mas não posso interromper...já fazem dois anos que não tenho um orgasmo. Desde o dia em que ele me traiu com aquele travesti. Agora ele se esquece que eu sou mulher... mas não me importo. Ele é um excelente pai. Ele proteje à Emily e à mim. Trabalha todos os dias no barco de pesca e nunca reclamou. Sinto as suas mãos calejadas e grossas em torno do meu pescoço; ele puxa os meus seios para baixo e eu posso ver pequenas queimaduras de sol em sua pele. Fecho os olhos e me deixo levar. Não consigo pensar em perdê-lo. Estou cheia de gratidão pelo Senhor Bigodes. Bill diz que me ama e me pedi para virar. Posso sentir um calor dentro de meu ventre. Minha pulsação está alta. Ele beija os arranhões em minha barriga. O relógio marca nove e meia. O barco já saiu. Bill é só nosso Emily, só nosso hoje. É a primeira vez desde o acidente que fazemos amor. É a primeira vez em dois anos que ele me toma como sua esposa e não sua amante... seus olhos estão como a ressaca do mar. Enrosco minhas mãos em volta do meu homem e sussurro: _ Temos que arrumar outro gato!

2 comentários:

  1. É interessante nos pegar fazendo interpretações e as destruindo a cada nova frase. A atemporalidade funciona muito bem aqui. Bigodes parece tomar uma proporção triplicada da de um gato normal. Ainda assim, alguns fatos que deveriam ser duros, são tratados com desdém. Assim como na realidade. Escudo.

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