terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Conto: Amor e Morte

O olhar de um boi na fila do abatedouro, resignado, com um infantil apego à vida mas caminhando resignadamente na fila, a promessa da martelada em sua cabeça larga no final. Era essa a impressão que se tinha sobre ela e seus olhos grandes enfiados demais naquele rosto demasiadamente raquítico, os ossos das bochechas saltando da face.Não era de se admirar que aos dezenove anos se apaixonasse por um viúvo. Nunca havia sido tratada bem pelos três irmãos mais novos, muito menos pelo pai, que a obrigava à cuidar da casa desde que sua mãe havia se ferido moendo cana e ficara com a mão esquerda parecido com a pata de um passarinho, os dedos afastados e tortos, mais longos por causa dos ossos esmagados. O primeiro homem que a fez sorrir, a fez também se sentir amada.Ela de fato se sabia amada, e vivia a cantarolar enquanto lhe engomava as camisas. A cama dos dois cheirava à falecida e ela não se importava... se sentia viva! Era ela que estava ali afinal. Não gostava de mexer em nada na casa, nem ao menos mudar a mobília de lugar, por receio de desagradar ao marido e aos filhos deles(dele e da outra, que é a primeira), afinal, eles se silenciaram quando os dois quiseram se casar.O marido, para agradá-la, jamais mencionava a sua morta, ainda que a foto dos dois, e ela sorridente carregando o primogênito pendesse como um grito gigantesco da parede da sala e a envergonhando quando alguma pobre alma resolvia visitá-la. Seus irmãos, agora mais velhos, continuavam cruéis como crianças e viviam à amolar dizendo que feia do jeito que era tinha tirado a sorte grande ao se casar com um viúvo rico e (bem)mais velho.Deus não havia lhes presentedo com filhos, por mais que tentassem, e ela acabou ficando velha demais para isso. Na verdade, a mãe dela não havia mesmo prestado depois do acidente(ela tinha apenas dez anos quando o pai chegou com a mãe ensanguentada e chorosa), e o amor parecia ser aquilo dali, lavar as vasilhas, dormir na mesma cama, cuidar das refeições, igual o que o pai dizia que a mãe fazia tão bem quando ainda podia. O pai dizia isso chingando, dizendo que ela, como filha, era uma desgraça e não sabia cuidar dele e dos irmãos. Ah se o pai à visse agora, esticando com zelo o forro bordado da mesa, de ponto tão delicado... o cheiro do bolo perfumando a casa.Ah se o pai visse as flores que o marido trouxera, rosas vermelhas, como se eles ainda estivessem na fase do flerte depois de vários anos de casados. O branco do cós do pano de mesa, o vermelho sangue das rosas. Ela achou que era o contraste mais mimoso que havia visto na vida!Talvez por timidez ou falta de jeito em viver, ele não havia lhe falado nada, mas as flores estavam ali como que para compensar a falta de palavras. Eles tomaram juntos o lanche e a noitinha ela passou a colônia favorita e vestiu a camisola de renda bem soltinha, deixando ver sob o tecido dois mamilos rijos e delicados. Os cabelos soltos lhe caiam como galhos de parreira, volumosos, cor de avelã. Ela se sentia verdadeiramente bonita.Ele a beijou sôfregamente, e ela pôde sentir pelo cheiro dos pêlos dele que ele a desejava ardentemente e os dois fizeram amor mais como dois amantes sujos do que como marido e mulher. O quarto e os lençóis da outra se cobriram com suor e outros líquidos...e os dois nus, estirados como dois vermes sobre a cama, sem ao menos cobrirem os pudores. Estavam exaustos. Dentro de si ela guardou um sorriso de malícia, tocando o próprio lábio onde o mesmo nascera.Quando o escuro se despedia, e o quarto se tingia do azul das quatro e meia, ela escutou um barulho como se um bichinho tivesse ao seu lado, um filhotinho de gato talvez, um chiadinho bem baixo, que foi crescendo, crescendo... por um momento ela achou que fosse uma assombração, o fantasma da outra querendo resgatar o que era dela. Quando teve coragem, o som já era estridente, ela abriu os olhos, o rosto do marido desfigurado em uma careta:"As flores eram para ela!", ele disse.

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