terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Conto: Um encontro com Estrela da Manhã

Acompanho os dois jovens pela trilha.Estive com o primeiro deles quando a mãe era espancada pelo padrastro bêbado...estive ao lado DESSE, pois são muitas crianças. Estive ao lado dele quando a mão pesada arrancava dois dos seus dentes de leite. Ao contrário do patético Cassiel, não fiz mais do que chorar as próprias lágrimas que caiam de seus pequenos olhinhos inchados. Me sinto abençoado por não saber o gosto do sangue misturado à saliva de um choro engolido.

Raphaela parecia gritar como se não houvesse vivido aquilo uma eternidade de vezes, suas mãos de pétala tentando conter as do padrasto. Ela virou o rosto e orou. Eu no entanto, jamais questiono as ordens Dele. A sabedoria Dele é infinita. Não sou simpático aos humanos. Esse comportamento fez com que Estrela da Manhã liderasse seu exército imundo, e lhe restasse agora e sempre acolher todos os monstros.

Antes de andar entre os humanos e tentar corrompê-los por pura vontade de possuir, Lucifer parecia inteligente, parecia sagaz, parecia forte. E o amava. Reconhecia de longe o ruflar de suas magnificentes asas. Cabe somente ao Pai esse amor que eu já desconheço. Eu o vi se seduzir Cassiel como se não o conhecesse, ou pior, exatamente por conhecê-lo. Eu o vi estender a bebida e falar sobre a riqueza inventada por ele... eu o vi rindo seu sorriso largo e se apresentando como "o próprio tempo"...

Mas Cassiel voltou para nós, assim como voltará Damiel.

Lúcifer não. Ao retirar os homens do Paraíso e mantê-los para si, ele é como o gato que dorme com o cão... é um inimigo somente durante o dia, pois a noite precisa sôfregamente de cada uma dessas almas para acalentá-lo em seus jogos de poder e calar a ausência Dele. Lúcifer deixou de ser um mensageiro para ser um escravo da própria humanidade a quem repudia...Nós servimos à Ele. Lucifer serve aos humanos.

O sol está mais baixo agora. Em breve cairá a noite. Para mim apenas a mudança do Céu, para os dois- que agora sentados na relva, suas costas contra um tronco seco- para os dois um dia a menos a se viver. Eles se agarram à essa vida como se fosse a única. Nem ao menos acreditam em Nós. Nós que estamos sempre tão perto.

Um deles está assobiando, e o outro brinca com uns gravetos. O saco pardo repousando como se fosse um terceiro amigo. Por um breve momento lembro-me dos assobios de Damiel. Nunca o entendi. Trocar algo infinitezamente maior por algo tão singelo. Ouvimos suas preces todas as noites. Alguns de nós ainda conseguem lhe falar.

Acariciando os rostos dos dois meninos, eu sussurro sobre o Amor, e com as minhas mãos eu toco os seus cabelos. Eu os chamo por seus nomes. Eu tento lhes lembrar de todas as vezes em que estivemos juntos. Tento lhes dizer que escutei cada um de seus apelos e que ouvi a voz de Deus me pedir para que olhasse por eles. Falo sobre Ele, que é três, falo sobre como Ele os tem cuidado desde o dia em que lhes foi dado o sopro da vida.

Suas mentes tomadas por delírios e vontades primitivas. Eu sentiria dor e cansaço se fosse como eles. E a minha voz ecoa vazia. As orelhas estão avermelhadas e eles estão tomados de excitação.
Não são mais do que dois pequenos animais agora. Eles não querem me escutar, é inútil.
O barulho da sacola de papel me impele a deixá-los, Ele me toma com seu infinito Amor e me diz que não devemos fazer mais do que foi feito. Disse que os deu livre-arbítrio, e que no Paraíso não há espaço para todas as criaturas da Terra. Me disse que o Éden é feito somente para as almas dos homens que o desejarem.

Sinto pena de Lúcifer ao olhar para trás enquanto abro minhas asas. A fumaça dos cigarros e ao som da bebida saltando dentro da garrafa. Um sorriso débil refletido no vidro com uísque barato. Ele nunca será o Pai. Sorri como se aqueles dois já fossem dele, menospreza o Amor e o Perdão...e o poder de transformação. Toma seus novos filhos adotivos, e continua o jogo que ele mesmo criou para o homem e pelo homem e que finge ser seu.

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