Ao leitor, esse ser imaginário com quem por vezes entrelaço os dedos, o cheiro do papel e a percepção que nós também nos tornamos acobreados.Esse pedaço de papel é feito de carne, da minha.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Conto: A Cor da Parede
As paredes do meu quarto são amarelas. Eram brancas até os doze. Uma luz vinda do poste atravessa o meu teto de maneira aconchegante. O rio Nilo! - digo para o Croc. Croc parece feliz, com o seu verde de pelúcia e seu sorriso amistoso e cheio de dentes, a língua pende ao lado deles.Não quero dormir de novo. Os jogos do computador são tão distrativos, mas na tela preta do monitor escrito "loading" vejo meus próprios olhos apavorados. Meu coração está vazio. Meu irmão sai daqui...deixe me ver, três horas.O seu ronco suave vem do quarto e eu imagino um enorme crocodilo no Nilo. Amon-Ra, o comedor de mortos, e Anubis pesando o coração- a balança de ouro pinga sangue. O sangue de verdade é escuro como o da primeira menstruação: pedaçinhos de útero preto-avermelhado e gosmentos na minha calçinha, e eu estava brincando de massinha. Minha mãe escuta o grito vindo do banheiro. Eu sabia o que era. Sabia. Só não queria. Nunca quis.O cheiro de musgo e terra ainda está nas minhas narinas. Eu sou o crocodilo da seca do Nilo. Ouvi dizer que eles dormem sentindo esse cheiro até a seca acabar, as vezes, sobrevivem por mais de três meses. Diminuem seus batimentos cardíacos.Eu morreria. Toda vez penso que vou morrer. Essa é a terceira. Só espero que meu coração na balança seja mais leve; não quero tê-lo devorado. Sei que Amon-Ra não é tão simpático quanto o meu croc.Estranho que ele é tão bonito... o oráculo. Nãaaaaaao. Não quero chamá-lo. Mas ele sempre vem. Sua cabeça dourada e redonda, o entalhe de sol, a expressão fixa. Um longo vestido de musgo verde escuro cobrindo o corpo sensual de mulher crescida, as pernas somem no chão engolidas pela terra de onde ele saí fazendo um barulho de parto. As mãos nunca param de dançar. Uma dança mórbida e aflita, ondas e ondas de um mar revolto, o quadris o seguem.O oráculo não parece feliz apesar de sua expressão não denotar sentimento, parece um escravo dos seus próprios movimentos e a terra o cospe. Em mim. Seu cheiro chega antes, começa com a terra molhada, depois vem o musgo e por último o cheiro de humidade. O cheiro de humidade sufoca. Me sinto claustrofóbica, enterrada viva na encosta do rio, os olhos cheio de moscas. A boca de um afogado.A primeira vez, aquele rosto sem boca, olhos sem pupilas, me disseram com uma voz dentro do meu cérebro que eu não queria, que eu não queria, mas que ele me diria coisas sombrias, segredos ruins, ia desenterrar a cabeça de porco que jazia na terra do meu quintal. escondida. A cabeça de porco em decomposição. O fruto ruim. O fardo secreto. A terrível noite. Disse que me pouparia se eu procurasse a caixa de sapato de criança debaixo da terra do quintal. os olhos sem pupilas olhavam de dentro dos meus onde deveria cavar e cavar. Antes da chuva.Minha cama ensopada, de sangue, menstrual. Achei que havia urinado também, mas era só suor. Minha camisola grudada no corpo. O croc caído no chão de barriga para cima. Tomei café de pão e margarinha molhados no copo cheio e escuro. Mamãe e o pai sairam cedo. O irmão ainda ia pra escola, me mandou andar logo. "Sua gorda pregüiçosa". Não iria conseguir ir a aula. Sem querer disse a ele que levasse um guarda-chuva, e ele perguntou se eu tinha comido demais e estava doente. Arrange outra desculpa, o céu está limpo, otária! E me deu um beijo estalado na testa salgada de suor.A chuva caiu as três horas. Tapei a cabeça com o travesseiro e chorei. Quando eles chegaram eu já estava dormindo. E ainda era tardinha.O cheiro veio de novo na noite seguinte. O banheiro branco daqui de casa. A água da privada se tingindo de vermelho. E o meu irmão não-nascido. Tinha olhinhos e mãozinhas. Tudo tão esterilizado e branco. O vaso branco. E o bebê. Os passos da minha mãe no corredor e de volta ao banheiro. A roupinha branca também. Não é para vestir. É um manto fúnebre. Um sudário para o pequeno ser. Quero o meu quarto de outra cor. Minha mãe não chorou.Posso evitar. Assim como poderia ter achado o pequeno crânio no quintal. Mas não quero. Sou uma assassina por omissão. No fundo sei que aquele coração enorme na balança é o meu e sinto os dentes afiados dilacerando a carne. Minha própria carne. Nego o meu dom. Não quero usar o oráculo. Não. Mas sei que o maldito me visitará até a morte. Sei tudo o que me vai acontecer até a eternidade. Sei tudo sobre mim e esse é o meu fardo. Melancolicamente longo.O irmão vai matar hoje. Por cinqüenta reais. Serão seis facadas nas costas. Seria melhor que ele vendesse o botijão da cozinha. Eu não falaria para mamãe. Não de novo. Não depois do que aconteceu da última vez. Seremos eu, mamãe e o croc. A polícia o vai pegar e ele será continuamente violado na cadeia por um dos presos. Eu não me importo. A escolha foi dele, ainda assim.Vou ser devorada. Minha alma. Esse é o desfecho. Mas um preço pagável para sermos só nós. Minha parede é amarela agora. Não sabia que mamãe estava grávida, não sabia que ela abortaria ao ver o meu irmão fazendo aquilo comigo. Papai não sabe também, nunca saberá, a não ser que eu escolha desenterrar algumas coisas literalmente. Afinal, aquele bebê seria outro menino, e eu não saberia o peso do seu coração. Só o de papai talvez seja leve. Apesar dele passar mais tempo fora do que conosco.Os dentes de Amon-Ra cintilam com a carne na noite. Mas nunca sei como é o final dos jogos.
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