terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Conto: As Duas Amigas

A velha contemplava o sofá e aos poucos ia se permitindo ser saudosista, assim como às vezes colocamos um cigarro na boca junto com o gosto da liberdade de ser. Lembrava de quando a mobília ainda tinha cor e ela tinha homens. Hoje, ela só tem a gata. Uma tem a outra.Mas as coisas vão perdendo o prazer e vai se perdendo o prazer das coisas. A gata e a velha já nem mais conversavam. As quatro horas a comida era despejada na vasilha e a gata sabia que, quando se deitasse perto da velha ela lhe correria na barriga as mãos. Não havia nojo entre elas. A gata por vezes assistia a sua dona no banheiro e elas se beijavam mesmo que uma das duas amigas fizesse seus banhos com a língua suja de rato e pasta de atum. A carne da geladeira por vezes ficava roxa e ainda assim era comida para não ter desperdício. Gostavam de iogurte de morango pela manhã.À gata havia sido negado um nome, em um dia de pura crueldade. A velha tinha esperado muito por alguém e como essa pessoa nunca chamou o seu nome de novo assim, vingou-se na própria gata, na época um bichinho de nada. Quando a sobrinha lhe perguntou o nome daquele pacote de pêlo, ela disse simplesmente "gata" e de seu lábio gotejou um sorriso malicioso que certamente a deixou mais moça.Mas a gata era macia e tolerante. Seus bigodinhos eram engraçados e ela nunca permitia que os ratos entrassem dentro da casa. A velha foi tomando um amor pela criatura, que a tratava com a consideração que se deve ter por um ser humano, mesmo que não tivesse ela um nome para si.A gata era esbelta e conseguia fugir das travessuras dos meninos das vizinhas. Já a velha, que era mais frágil e débil, sofria muito por ser chamada de bruxa(no fundo ela adorava crianças) e tinha sempre que engolir a vontade de dar a garotada alguns tostões para limpar o quintal.A casa toda não tinha nada de valioso, a não ser a memória, e era rodeada só por uma cerca de arame farpado. O mato grande dava mesmo ao lote um aspecto de abandono. A grande mesa de madeira e algumas cadeiras velhas apodreciam em meio a garrafas e entulhos deixados por mendigos(que por vezes dormiam no quintal).A anfitriã os observava -sempre com receio- da janela da sala, e como sua expressão era doce, eles nunca a feriam ou usavam o quintal para obscenidades e escatologias. Na verdade, o que a velha gostava, era de ficar observando as garrafas: vaga-lumes azuis, marrons e verdes reluzindo, reluzindo na noite preta.Uma vez por mês ela recebia uma visita de verdade, uma especial. A sobrinha Agnes. Arrumava a mesa com flores e comprava pão novo. Quando mais saudável fritava pastéis. Agnes e ela se divertiam como duas moçinhas. Contavam muitas histórias. E a velha sabia que a sobrinha a visitava secretamente, sem os meninos e o marido, para poder se permitir ser criança de novo.Por vezes elas faziam brincadeiras, como origami e papel machê. Ou então, jogavam baralho valendo cigarros ou um gole de bebida(a mais nova sempre se empenhava muito para ganhar por causa da saúde da tia). A colônia da tia tinha um cheirinho bom, misturado com velhice mas que fazia lembrar de como ela foi bonita de um jeito exclusivamente seu. E com os olhos de menina, Agnes- cordeiro em Latim- via aquela tia sem rugas, com seu rosto cheinho e o cabelo de favo de mel, sorrindo como se ainda tivesse todos os dentes.Um dia caiu muita chuva e por toda a casa se escutava o plic plic plic das goteiras enchendo os baldes. O mato virou um brejo e os ratos sumiram por um tempo, deixando a gata um pouco mais carente e gulosa do que o habitual. A velha sentiu uma vontade egoísta lhe crescer dentro da barriga, uma vontade de se mudar para uma casa menor e melhor. De deixar a gata. Mas quando ela olhou para as pernas, e sentiu o roçar, os olhos grandes, um pouco mais magra, seu coração se encheu tanto de amor que chegou a doer. E nos outros dias de chuva ela nem mesmo se importou dos baldes transbordarem. Vai ter mais pernilongo picando a meninada!- se consolava.Quando a gata morreu fazia um sol de dar dó. Os ratos já tinham até voltado aos entulhos. A velha sofreu tanto que murchou. Chorou. Nem assistiu a novela. Nem olhou, lá fora, os casulos de mariposa da roseira selvagem. Quis ficar doente. Deixou de tomar o remédio e dormiu oito dias sem cobertor.Mas poucas pessoas são donas da sua própria Hora e não foi diferente com ela. Agnes viu a tia tão amuada e fraca que aos poucos parou de visitá-la. A tia não a censurava pois nunca gostou do cheiro que a velhice lhe deu. E também sabia que as pessoas têm suas próprias vidas, e as pessoas que elas criam costumam ser a vida delas. Ela só havia criado a gata e o mato. Aquele casarão de cerca e móveis desbotados. Tinha consciência de seu temperamento difícil e das coisas que preferiu cultivar ao invés de cultivar gente.Decidiu escrever um testamento. Sabendo que a sobrinha vivia em uma casa muito na cidade, espremida, deixou à ela tudo que tinha. A casa, afinal, era grande e o quintal se bem cuidado viraria um ótimo lugar para os filhos brincarem.No mesmo ano Agnes se mudou. Mais pela tia morta do que por ela mesma, que antes estava só a dois quarteirões do trabalho. Tiveram que vender muita coisa para reformar a casa, mas no final, ela ficou tão boa e alegre, que deu à sua caçula o mesmo nome da tia(que nem era um nome bonito). Nem se lembrava que houve uma gata um dia.

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