Ao leitor, esse ser imaginário com quem por vezes entrelaço os dedos, o cheiro do papel e a percepção que nós também nos tornamos acobreados.Esse pedaço de papel é feito de carne, da minha.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Conto: O Chuveiro Queimado
Haviam guerras, pessoas aleijadas, pessoas moribundas. Seu vizinho, o Seu Marcos, por exemplo, estava sendo carcomido pelo cancêr. Se prostrava em sua cadeira de rodas com o olhar resignado de um boi no abatedouro enquanto sua família o dava adeus todos os dias. O aceno débil do seu Marcos na ida pro trabalho tornava as suas manhãs insuportavelmente mais frias.Estava um frio de doer. Haviam mendigos sem agasalho. Gente dormindo em sua própria urina, crianças chorando de desnutrição, mais parecidas com pequenos alienígenas do que com humanos, a cabeça desproporcional, os braços, ossinhos compridos pendendo de uma caixa toráxica feita só de pele e de costelas.Ela dormira bem, comera bem. Não havia o barulho das bombas cortando o ar, nem doenças terminais sem cura. Não havia contas a pagar, nem um bebê chorando diante um peito murcho e sem leite. Sua casa tinha as paredes gentilmente pintadas e o chão de taco cuidadosamente polido. Suas roupas perfumadas e limpas deitavam-se sobre o sofá como pequenos cadáveres de tecido. Era uma manhã perfeita, daquelas cheia de sol mas como estava frio.Em momento algum ela estava alheia. Sabia o tempo todo da infinitesimal importância de seus problemas para o mundo. Sabia que nunca teria para quem os contar. Alguém que se simpatizasse com eles. Com ela. A moça de classe média que tinha um bom trabalho e uma vida solitária. Provavelmente atribuiriam tudo ao seu gênio difícil. Julgariam- na como se a conhecem intimamente, dizendo que ela sofria por puro egoísmo.Pensava se por devaneio deveria engolir os problemas por os merecer, por estar destinada a tê-los sozinha, se inventava sofrimento. Cogitava estar enlouquecendo. Afinal, hoje era um dia frio, e debaixo da água gelada, ela chorava nua e desprotegida como um recém-nascido... se sentia terrivelmente só.Da cozinha vinha a tosse da sua avó que estava resfriada... como não poderia estar? Era inverno e as duas estavam tomando banho de "água esquentada no fogão" há duas semanas. Por quê essa ausência de homens na casa. O retrato do avô sorrindo na parede... e nenhuma palavra dita. Os olhares trocados entre ela e a avó, olhares que queriam dizer "aquele cretino do seu ex namorado resolveria isso em dois tempos". Uma promessa feita pelo irmão mais velho de socorrer a jovem e a velha dama.Mas só as duas. Há dias. Chegada a hora de sair debaixo da coberta, ela fitava aquele monstro branco e pescoçudo da incapacidade. Se sentia tão frágil que quase se quebrou. Humilhada. Não sabia fazer "pequenos reparos" apenas assinar cheques, a promessa pendente. A espera. O pai que nunca teve. Os irmãos longe dali. O ex namorado que a havia ganhado com pequenas gentilezas masculinas para depois arrancar o seu coração. O pai(ausente). O avô(morto antes que ela nascesse). Os irmãos(casados). O homem(que a assassinara um pouco). E o chuveiro. O fantasma de plástico.A precavida mãe a havia educado para jamais esperar gentileza dos homens. Para fazer tudo sozinha. Para se sentir forte e independente.(Autosuficiente, as vezes). E assim ela se foi... acreditando na mãe... e mascarando a dor com os seus ofícios. Dizendo a si mesma que não tinha tempo pra nada.(Para o romance). (Para uma família). Veio o chuveiro como o diagnóstico do Seu Marcos. O chuveiro foi como o dia em que os médicos pararam de cuidar dele e o deixaram morrer em casa. O chuveiro, altivo, inalcançável, cheio de fios misteriosos...a tomava, quase em um estupro. Gritava: "você precisa de alguém", "onde está o seu pai, o seu amante?", "você pode comprar o amor e a vontade de protejer?"...e ela lutou. Abriu a água no máximo, respirou fundo e sofregamente se pôs debaixo da água gelada. O ar gelado. O corpo gelado. O coração. Só as lágrimas escorriam quentes.Debaixo do chuveiro queimado ela sabia das guerras, das moléstias, da fome e das injustiças. Mas sabia também de si, uma menina. Sozinha. Mimada. Incompreendida. Lutando com a água na manhã fria de in(f)verno. Lutando com a solidão. Com o rancor. Com a inveja de seus irmãos que tinham as suas famílias. Com a vitimação. Mas o seu choro era sôfrego e sua dor legítima, mais dor e mais forte por não poder dizer "Sofro porque o meu chuveiro queimou". Ela soluçava e tremia... achou que ia morrer de tanta tristeza. A infelicidade personificada em forma da água gelada. Com o banho matinal veio a constatação de que ela não era uma pessoa feliz."-Vovó?! Você poderia chamar um bombeiro hidráulico para nós?!"- disse e depositou com cuidado algum dinheiro sobre a mesa-"o banho frio está nos deixando resfriadas. A gente não conta pro irmão!". Beijou as bochechas murchas e saiu.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
sim...há fases de impotência para as quais havemos de nos precaver de descrença e resignação....mas são fases, como disse...
ResponderExcluir