terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Conto: Carne

Ao passar pela ponte solitária ouvira mais uma vez as vozes. Seriam elas humanas? Pois não pareciam. Eram límpidas e ecoavam como se não houvesse nada entre elas e a atmosfera, como se fossem produzidas por algum organismo biológico que vibrasse com a passagem do ar. Como se fossem feitas de carne e não de correntes cerebrais.Carne era algo que pouco se conhecia. Somente sabia-se algo sobre a respeito. Era o material dos cérebros e dos tecidos internos, e supunha-se haver uma densa camada de carne abaixo do tecido metálico que cobriria toda a extensão do corpo-concreto, mas que é seria inteiramente dissolvida ao entrar em contato com o ar.Ele nunca havia visto carne. Em suas incurssões noturnas gostava de ir até a casa de partida para ver os corpos serem sepultados...por vezes, alguns saltavam da máquina e eram lançados à metros de distância. Porém, a camada metálica jamais se rompia para que ele pudesse vislumbrar a parte interna do ser humano. A pele se amassava, perdendo um pouco do brilho do metal e a expressão dos cadáveres era horrível, como se não estivessem mortos, como se nunca tivessem vivido...nessas horas ele entendia o porquê de não haver superfícies refletoras na maioria dos quartos.Segundo os comentários dispersos na Rede, só se poderia ver o sangue e a carne por um milésimo de segundo antes que eles evaporassem na atmosfera. Diziam que o sangue evapora tão rápido quanto o hidrato de oxigênio. Seus avós lhe contaram que somente há três séculos a Medicina passou a ser uma ciência oculta relacionada à criação da vida e à espiritualidade. Antes, qualquer humano com determinação e esforço acadêmico poderia estudar a anatomia e até aprender pequenas operações laboratoriais. Após uma mudança no governo político, foi decidido que a medicina e outras ciências seriam restritas às pessoas da manutenção da vida.Pouco se sabe acerca do passado. Todos, fora do círculo dos escolhidos pelo teste de sensibilidade, acabam mortos tragicamente nas tabernas da Grande Rede ou simplesmente desapareciam do mundo de contato. As pessoas eram fortemente aconselhadas, pelos médicos e líderes espirituais, a nunca deixarem as suas comunidades virtuais e olhar os resquícios da realidade concreta. A maioria delas jamais o faziam, pois, só havia a necessidade de se lembrar de seus corpos-concretos na ocasião do nascimento de um novo humano. Demoravam-se de dois a três anos para que os dados genético dos pais do embrião fossem coletados.Ele perguntava a sua amante como ela conseguia lidar com a distância geográfica. Perguntava por que não nos questionávamos sobre as outras quarenta pessoas que estavam em um mesmo quarto. Seriam eles conectados à nós...e o Governo os mantinham próximo, ou éramos intencionamelmente separados de outros eu-concretos com os quais nos socializávamos? Ela respondia que seria doloroso demais viver em um mundo que dependesse da distância geográfica entre as pessoas...chamava a isso de loucura nostálgica e doentia, suicídio.Mas ele continuava a sair. As suas rodas já estavam desgastadas e sabia que se continuasse com suas aventuras logo se desconectaria para sempre da Rede, sendo a própria Casa de Despedida o seu fim próximo. Deixaria de existir para os outros. Uma única vez conseguira ficar um ano inteiro sem sair do quarto, porém, quando se completavam as 16 horas de atividade cerebral espontânea, ele se despedia de todos para continuamente sonhar com as vozes da ponte e o mundo concreto.Na ponte as vozes ficavam mais intensas. Se é que seriam vozes... ele se arrastava com dificuldade, seus braços pendidos com as juntas arrebentadas. Após andar mais dez milhas, suas juntas motores inferiores se arrebentaram fazendo com que a parte traseira do seu corpo de desconectasse inteiramente da parte superior. Por anos inteiros ele teve como única visão a linha acinzentada da ponte. Vivia de lembranças das pessoas que conhecera na Grande Rede e esperava que seu suprimento vital se esgotasse em menos de dez anos. Sua existência imergira em melancolia desesperadora... sentia dores horríveis. Hermético. Paralisado. Condenado. Como se uma superfície densa o isolasse de si mesmo e dos outros.Sua visão, quase cega percebeu um brilho à algumas milhas dali. Seria isso o conceito flutuante de felicidade? Em toda a sua vida, aquela era a primeira ocasião em que se encontrava com outro desconectado. Uma ânsia infantil tomava todo o seu corpo estilhaçado. O brillho se tornava menos ofuscantes e as sombras davam ao vulto as formas familiares e idênticas às dele. Era de fato um desperto!O outro, que ainda se movia, estava agora diante dele. Ele jamais saberia diferenciá-lo dos mortos se não fossem pelos sutis movimentos dos aparelhos vitais. Tomado de horror ele só então notava que ambos eram incapazes de se comunicar... e que pela posição em que se congelou ao arrebentar suas engrenagens motoras, a caixa de alimentação jamais seria notada pelo outro desperto. Estava morto, ainda que suas funções cerebrais estivessem fervilhando de emoções nunca antes sentidas.Aos poucos ele procurou se concentrar nas vozes da ponte. Estava certo de que eram humanas, que viam do passado primitivo. Procurou se distanciar do movimentos das engrenagens do desperto, que iam se tornando menos e menos perceptíveis a medida em que ele se afastava dali. O pânico da chegada Hora o sufocava...assim que o outro se conectasse, ele avisaria aos coletores e em algumas horas, seu eu-concreto seria derretido na Casa de Despedida. Certamente todos já o consideravam como morto. Na Grande Rede, seu nome estaria escrito na gigantesca Placa do Adeus.

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