domingo, 26 de junho de 2011

O Gambá e seu rabinho de cabo de guarda-chuva.

Toda pessoa comum está sujeita a acontecimentos extraordinários. Alguns dependem de uma certa sensibilidade, outros acontecem por si só. 
É comum se ver gatos, pássaros, cães e por vezes ratos coexistindo com os mendigos na sujeira das ruas. Gosto de observar as matilhas de cães que trotam na rua. Eles não tem preocupações ou doenças humanizadas como os nossos próprio cães. Eles saltitam, rolam pela grama, mordiscam uns aos outros e seus rabinhos(muitas vezes carcomidos por parasitas) estão sempre sendo brandidos freneticamente. Eles correm e migram e são felizes.
Por vezes sento em um banco em uma ilha  de uma lagoa urbanizada e não pareço estranha ou ameaçadora para esses cães de rua. Quando percebo eles já estão à coçar suas pulgas bem perto de mim. Consigo então notar detalhes de suas fisionomias e perceber as relações de liderança entre eles. Cães são organizados nesse ponto. Eles me parecem bem assim, não tenho vontade de "salvá-los", não esses que se adaptam bem à liberdade. Ao mundo extritamente canino.
Minha cadelinha foi adotada da rua. A Lucy é viciada em gente. O tempo todo que viveu nas ruas, não se uniu à uma matilha. Um dia, vi pela janela de onde estava, uma moça sentada e a Lucy tentando desesperadamente se aproximar dela, a moça dizendo "Xô, xô!" e balançando os braços como duas bandeirolas.
Enquanto escrevo, ela dorme no quintal. Parece contar os segundos para o próximo contato. Não a vejo se entreter como esses cãezinhos da ilha faziam. Ela está sempre me esperando. Depende de mim para passear, brincar, comer. Como disse, ela é viciada em gente, inclusive crianças.
Quando meu namorado chega, ela começa a dar pequenos choramingos, sei que é ele antes da campanhia tocar. Abro o portão e ela uiva de felicidade, pula  e brinca(agitadíssima) com ele por alguns minutos. Depois entramos e ela volta a esperar até a próxima visita. Mas devo salientar que ela escolhe seus favoritos. Se ela não conhece, late. Se conhece, fica calada. Se gosta muito, choraminga.
Os meus gatos gostam muito de mim. Mas gostam sem precisar tanto assim quanto a Lucy. Para eles é o suficiente estar no mesmo cômodo e ganhar comida e água fresca quando pedem. Eles brincam, caçam e brigam, sem nós. Gatos são assim. Eles parecem nos conceder um favor ao nos deixar acariciá-los ou ao fazem um charminho. É como se o gato soubesse da carência do ser humano. Como se o gato nos visse por dentro e nos apontasse imperfeições e necessidades desesperadas de afeto.
Me pergunto o que nos faz selecionar animais para merecerem ou não a nossa compaixão. Um cão sim, um rato não. Ratos são parasitas urbanos e transmitem doenças, assim como os pombos. No entanto, não vejo pombos serem esmagados com vassouras ou causarem gritos. Em mim, eles causam mais repulsa do que os roedores...e ganham pedaços de pão para depois defecarem sem pudor nos telhados e passeios.
Um dia precisei matar um rato. Ele foi trazido pra dentro de casa pelos gatos e corajosamente se encaixou em um buraco do tamanho do seu corpo, atacando com mordidas e unhadas os gatos que tentassem removê-lo dali. A faxineira, aos gritos apavorados, me mandou matá-lo. Não consegui. Achei que ele foi tão valente e queria tão desesperadamente continuar a viver. Em um primeiro momento começei a apertá-lo com a vassoura e ele chorou. Chorou. Um "quíiiii" forte, prolongado e sentido. Peguei outra vassoura, prendi ele entre as cerdas das duas e o soltei na rua. Ele parecia em tudo com os gatos e os cachorros, só era menor. Também tinha um focinho pretinho, bigodinhos e olhos de jabuticaba assustados.
Ratos não vivem em lugares limpos e sem comida, se produzimos a sujeira e o alimento, temos que conviver com eles.
Mas a coisa extraordinária que me aconteceu foi ver bem de perto um filhote de gambá. Ele estava se arrastando em jardim de folhas grandes e altas na faculdade. Nessa faculdade moram muitos gatos, e a princípio achei que fosse algum deles. O barulhinho continuou, continuou e ele finalmente apareceu: o focinho compridinho se contorcendo muito próximo ao meu pé. Eles não fedem. Eles soltam um cheiro desagradável como mecanismo de defesa quando se sentem em perigo. Curiosamente ele não se assustou comigo. Assim como aos cães de rua minha presença à ele não representava qualquer intimidação. O observei já que ele se mostrou. Era apenas um bebê. Bebê-gambá. E estava machucado. Arrastava as duas patinhas traseiras e seu rabinho. Disse a mim mesma que gambá é um "bicho do tempo". Minha mãe usa essa expressão pra falar dos gatos e sua habilidade de se curar sem a interferência do ser humano. 
Na verdade, o gambá sofre de uma mazela: não causa simpatia ao homem e por isso é morto. Em que esse bichinho nos prejudica? É perigoso ou peçonhento? Não. Se alimenta de criançinhas humanas? Não. Ainda assim são mortos à paulada e vêem seus filhotinhos serem igualmente assassinados caso tenham se aproximado demais das casas. Assisti isso muitas vezes quando criança no sítio dos meus avós.
O gambá é somente um marsupial inofensivo que alimenta de raízes, vermes, frutas, ovos, pequenas aves e inclusive de anfíbios e serpentes. Seus movimentos são lentos e sua visão é machucada pela luz forte dos carros e das lâmpadas porque ele só sai  a noite de seu esconderijo para conseguir comida.
Queria que mais humanos se permitissem olhar para o rabinho cabo de guarda-chuva do gambá. Eles veriam que ele poderia muito bem ser uma mistura de gato e cachorro que anda trôpego e cego quando é descoberto durante o dia. Não possui a elegância felina ou a expressão facial canina. É so mais um bichinho do mato que acontece na cidade também.