Ao leitor, esse ser imaginário com quem por vezes entrelaço os dedos, o cheiro do papel e a percepção que nós também nos tornamos acobreados.Esse pedaço de papel é feito de carne, da minha.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Conto: O Picadeiro
Acordou aquela manhã com o coração em chamas. Estava pesado demais para o seu peito. Pesava como se o povo de Faery dormisse sobre seu tórax esperando o advento da manhã para lhe roubar uma das crianças.Ao invés de assar o pão de ontem com uma colher de margarina e passar o solitário café preto e forte de antes de ir pro escritório, olhou pela janela manchada de cinza do apartamento. O circo se estendia a poucos metros dali. A lona, um arco íris dentre os prédios. A alegria completamente alienígena daquelas cores em contraste com a cidade.Fechou os olhos e se lembrou do sons do picadeiro. O rugido enorme do leão que fazia tremer por dentro e deixava suas pernas magricelas de menino bambas, a voz marcante do apresentador, as gargalhadas irônicas do palhaço.Os palhaços não eram autênticamente felizes. Eles estavam entre ser bicho e ser gente, como as outras aberrações, a mulher barbada, a mais gorda do mundo, o homem lobo, a mulher gorila e até mesmo os desengonçados anões. Gente de circo.No escritório, ele também se confundia..por vezes era o homem cálculos e relatórios. Tão ironicamente misturado com seu ofício que também sofria de cálculo, a dor pungente e chata nos rins. Raramente perguntavam seu nome ou como havia sido seu dia, queriam saber dos memorandos e papéis. Rá! Papéis. Zé que é Palhaço Brigadeiro, Teodoro que teve um filho que não sabe o nome, e que põe no rosto sofrido de homem velho e soliário, carregando consigo aquela lembrança daquele único amor, uma máscara sorridente que magicamente o torna outro, criança de novo, Palhaço Beringela.Com um suspiro puxa a gaveta da cozinha e a faca de corte. Com ela, rasga o peito e enfia a mão dentro e agora segura um coração palpitante como um passarinho, quente e pulsando frágil, frágil. Segura com cuidado para não apertar muito. O pijama, agora rubro, foi transformado magicamente do amarelo doente em trajes salpicados de vermelho, mais escuro no meio e mais claro a medida que se afastavam do lugar onde antes era seu peito fechado, e que agora se abria em flor.Foi um pouco difícil abrir as portas usando uma mão só e andar até o circo também foi penoso pois o chinelo estava uma poça escorregadia. O tempo todo ele tinha que conter a vontade de correr até o circo com um sorriso aberto e os olhos brilhantes, mostrando o que tinha em suas mãos.Uma dona deixou cair as compras mas ele não pode se abaixar para ajudá-la. Olhar acusador. Nem ao menos havia lhe notado as mãos ocupadas. Ele era invisível como o habitual, mesmo em seus trajes novos, por sua vez, as outras pessoas também eram invisíveis, aquele momento era só dele.Assim, ele pôde virar com desprezo o seu rosto e combinou consigo mesmo de não párar por mais ninguém.A fila da bilheteria era pequena, e só ao chegar a sua vez foi se lembrar que não havia trazido dinheiro. Não precisou dizer nada, do outro lado da gradinha abriu-se um sorriso compalcente e lhe foi empurrado um ingresso "Cuidado com isso que você carrega, hein e evite sujar o ingresso, precisamos reaproveitá-lo na próxima noite, não estamos ganhando muito, você sabe!". Ele acenou com a cabeça para mostrar que havia entendido o pedido, e mostrou os dentes em um gesto meio adoentado.Sentou-se lá no fundo, mas mesmo assim se sentiu nú, pois na arquibancada, projetada para cinquenta espectadores, não se sentavam mais do que quinze.Os tambores rufaram e ele pela primeira vez viu, com seus olhos, o pequeno coração(pequeno para um homem da sua idade, certamente deve ter murchado um pouco) bater mais forte, quase saltando das palmas de suas mãos.Então, com um grito profundo, ele atirou seu coração às areias do circo. Ele caiu bem no meio do picadeiro, causando um pequeno levantar de poeira. Alguém espirrou ou tossiu. O leão limitou-se a farejar e desprezar o pedaço de carne. O trapezista sorriu.Os palhaços zombaram daquela atitude desesperada.Só a pequena bailarina compreendeu. E veio caminhando com seu olhar melancólico e os passos medidos. A pequena bailarina não era mais que uma menina, no entanto, a mais delicada das mulheres. Uma mulher-menina de porcelana, um bibelô sensível. Com as mãos em concha apanhou o coração. O sangue lhe manchava as luvas brancas de carmina.Naquelas pequenas mãos de opala, o coração se tornou magia. A arquibancada vazia se encheu, as crianças brincavam na rua, podia se ver as nuvens de Outono quando se olhava para o céu. A cidade e seus arranha-céus haviam ido embora e o circo deixara de ser nômade. Lá fora, brincadeiras de peão, de rouba-bandeira, cachorros latindo, um homem acenando de sua carroça. Donas conversando nos portões, alguém vendendo pão, outro assobiando.Demourou-se um pouco para que ele aprendesse a vestir com razoável destreza, os risos da hiena, a frágil polidez dos elefantes e a elegância marinha dos corcéis. Antes vieram os tombos, as frustrações.Porém, quando o espetáculo acaba, a noite alta, as pessoas cantarolando. Quando as luzes se apagam, e o leão boceja, o palhaço tira a sua maquiagem e a bailarina cessa seus rodopios...é quando o picadeiro dá lugar à outro tipo de mágico. Um mágico com um buraco no peito. Ele abre seus braços e como já não tem o coração lhe pesando, ele voa. Vai para um mundo onde não há espelhos falsos e o sol devolve a cada coisa a sua sombra natural. Nesse mundo não há o aplauso, porque tudo é justo. Porque tudo é bom.
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