sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Feliz Natal!


Desenho feito com o mouse por mim no Windows Paint.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Padrões delatores

O reencontrei depois de vinte anos em um jantar beneficente. Ele gargalhava de maneira espalhafatosa tombando a cabeça para trás. Puxava para cima e para baixo seu cônjure, jovem, submisso e com ar de doente.
Tentei fingir que não o tinha visto. Senti o suor escorrer acusadoramente da minha orelha até o colarinho que precisei afrouxar um pouco. Tudo se passou muito rápido. Fingi ignorá-lo, ele me viu, veio até mim. Uma figura grotesca, gêmeos xipófagos em que um não se desenvolve. E fez uma piadinha sobre aquele dia na fazenda, chamando para nós toda a atenção de meus sócios.
Nunca imaginei que esse episódio poderia ser externalizado. O venho mantendo em segredo por toda a minha vida. Fiquei atônito como alguém que assiste o sangue vazar da artéria inutilmente tentando estancá-lo com as mãos.
Tentei estancá-lo com um sorriso amarelo e algum comentário sobre ele ser brincalhão. Não sei se as outras pessoas perceberam minha tensão. Já fazem duas semanas desde então. Não consigo dormir, fazer amor com minha esposa ou brincar com meus filhos.
Estou decidido que a única solução será matá-lo. Éramos crianças. Eu não sou viado. Disse isso à ele. Não sou uma bichinha. Ele acenou que compreendia e prometeu fazer segredo. Ele foi avisado. Lembro me claramente de tê-lo dito que o mataria se ele contasse à alguém que eu o penetrei.
Uma única vez. Não nos beijamos. Ele era tão feminino. E tinha um corte de cabelo de mulher. Era perfumado. Nunca trabalhava na lida com os animais ou o fêno. Eu era apenas um garoto. Ele se insinuava o tempo todo. Achei que fazer aquilo era a única maneira de fazê-lo párar. Me senti aliviado quando me mudei para a cidade para estudar. Achei que nunca mais o encontraria.
Pensei em segui-lo, e quando ele pedisse um drinque e poderia invenená-lo com arsênico. Mas vê-lo seria arriscado demais, assim como pagar alguém para fazê-lo. A solução seria estudá-lo, escolher uma hora do dia em que o encontrasse sozinho e assassiná-lo com um tiro usando máscara e uma arma com silenciador. Teria que me livrar da arma do crime e das roupas. Não poderiam haver testemunhas.
A pior parte foi agir com naturalidade durante os seis meses que o segui e planejei tudo. Passei a fazer musculação e sair do escritório todos os dias na hora do almoço. Me matriculei em uma academia a algumas quadras da casa dele. Por sorte a esteira tinha vista para o apartamento dele. E era a única academia que ficasse a menos de 5 kilômetros do meu escritório. O álibi perfeito caso me interrogassem sobre minha ida até lá. Fazia todos os aparelhos e a esteira sempre por último.
O exercício físico era parte do plano. Precisaria estar em forma... afinal, descartei a arma(seria muito difícil conseguí-la sem deixar um rastro de delatores) e me decidi por esstrangulamento. A localização estratégica da academia foi um golpe crucial do destino. Minha mulher também precisava acreditar que eu estava me exercitando para atenuar os efeitos do estresse do trabalho.
Estava apenas esperando que o momento viesse. O local do crime. A princípio pensei em usar uma blusa de flanela listrada que não faz parte do meu guarda-roupa. Mas as peças baratas produzidas em uma escala grande o suficiente para não serem notadas no caixa não são alinhavadas de acordo com a estampa. Um bolso costurado de maneira randômica em uma estampa torna qualquer blusa dessas tão única quanto uma digital.
Comprei um par de blusas brancas e um par de jeans, e um par de tênis dois números maiores do que eu normalmente usaria. Minha mulher não poderia notar a ausência dessas peças. Apesar do estrangulamento não deixar marcas de sangue, teria que mudar os sapatos por causa das pegadas. Não poderia errar. Qualquer contusão ou arranhão poderia me entregar de bandeija à polícia. Não sei como me sairia em um inquérito.
No dia do assassinato, as nove, furei o pneu do meu carro no caminho do trabalho(deixei-o sem step)... teria somente 20 minutos. Pegaria o metrô. Desceria uma estação mais próxima ao meu carro e iria a pé pessoalmente ao reboque. O tempo que economizaria no metrô seria o tempo que desporia para assassiná-lo. Contaria com a sorte aquele dia. Se tivesse que dessistir por qualquer motivo, deveria pensar em outro jeito.
Esperei no beco escuro onde nenhuma câmera, janela, ou pessoa me espreitasse. E quando ele veio, o puxei. Faziam uns barulhos engraçados e acho que escutei seu pulmão desinflar e morrer. A parte pior foi trocar de roupa. E ter que esperar até o dia seguinte para me livrar da coberta com a saliva e o dna do morto. Muitos assassinos são pegos com essas peças ainda no carro. Tive o cuidado de escondê-las em um fundo falso de uma caixa de papelão onde carreguei umas compras para a casa.
No dia seguinte a coloquei em um pacotes de lixo diferentes e os dispensei ao longo do caminho de ida e volta do trabalho. Algum conhecido me viu, por sorte já sem um deles, tive que fingir comprar um café. Por sorte havia marcado estrategicamente cada um dos lugares. Pelo retrovisor do carro vi um mendigo se apoderar dos tênis. Vi sua boca faltando dentes sorrir.
O corpo demorou três dias para ser achado. Não fui interrogado. Parece que o passado no interior escondia para o morto segredos mais sombrios do que o que tínhamos em comum. Usava um nome fictício. Ninguém sabia seu nome real ou o nome dos seus pais. Espero nunca mais ter que matar alguém.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Rudolph and his red nose.

O Rudolph tinha o nariz vermelho e brilhante. Todas as outras renas não. Rudolph era um dumbo versão natalina. Só que voar não era o que o diferenciava das outras renas.
As outras renas eram cruéis com ele e o viviam caçoando, o excluindo por causa da cor do seu focinho.
Até que Papai Noel chegou e o convidou para guiá-lo com seu nariz brilhante pela noite. E assim, ele achou seu lugar. E sua imperfeição se tornou um diferencial. E ele, por sua vez, se tornou a rena mais querida de todas.

Comigo isso não vai acontecer. Minhas imperfeições não são tão simpáticas quanto um focinho carmin!

ps.: Desenho feito por mim com o mouse no Windows Paint.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Não estou pronta para o Natal...

"Hem Of Your Garment" -Cake

I am intrinsically no good

I have a heart that's made of wood

I am only biding time

Only reciting memorized lines

And I'm not fit to touch

The hem of your garment



No, no I'm not fit to touch the hem of your garment



I have no love but only goals

How very empty is my soul

It is a soul that feels no thrill

A soul that could easily kill

And I'm not fit to touch

The hem of your garment



No, no I'm not fit to touch the hem of your garment



I am intrinsically no good

I have a heart that's made of wood

I am only biding time

Only reciting memorized lines

And I'm not fit to touch

The hem of your garment



I am intrinsically no good

I have a heart that's made of wood

I am only biding time

Only reciting memorized lines

And I'm not fit to touch

The hem of your garment



No, no I'm not fit to touch the hem of your garment

The hem of your garment




Pensei na chuva que caiu um dia ploc ploc ploc e mudou por um décimo de segundo o meu dia de formiguinha corta corta corta.
Penso só em minhas feridas. Sou verdadeiramente hipócrita.
Confraternização. Porque a família são seus únicos amigos reais.
Mas os favores e os socorros que eu infelizmente tentei pedir tiveram um alto preço emocional.
Não que não tenham havido favores legítimos e de bom coração. A estes sou grata com devoção e afetividade.
Mas descobri que além de me sentir alienígena, sou alienígena.
Lidando com minha primeira reprovação escrita de caneta vermelha em um papel caro, me descubro moralmente doente e moralmente falha. Vivendo uma vida de 80% infelicidade.
Não me identifico com nenhuma religião.
Não me identifico com a minha pátria.
Não me identifico com a casa onde moro.
Meu melhor amigo da faculdade morreu no dia 25. Me identificava com ele. Aos 21.
Eu ao invés de sentir saudade, o invejo.
"I'm a creep. I'm a weirdo. What a hell am I doing here. I don't belong here."
Por que continuo tentando.
Por que insisto em sair da minha zona de conforto pra ser agredida.
O Natal está chegando. Mas meus ferimentos são demasiadamente profundos para serem estancados antes das festas.
Passarei o Natal sangrando.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Tartarugas Bebês.

Era virada de ano. Estava na praia com a minha família. Uma praia praticamente vazia senão pelas casinhas do condomínio fechado e umas esparças pessoas, a maioria de Minas.
Voltava de uma festa. Cantavam músicas, dançavam e os casais andavam de mãos dadas.
Eu, como costume, me sentia deslocada e alienígena. Sou muito diferente daquelas pessoas e mais ainda das que são "sangue do meu sangue". Não queria crescer. Andava sozinha pela trilha de mato cuidadosamente aparado, estava de sandália e as gotinhas do orvalho tocavam as laterais do meu pé. Não podia ver o mar, mas podia escutá-lo: à minha direita as casas do condomínio e o local da festa com as luzes acesas e as vozes que se distanciavam à cada passo novo, à minha esquerda algumas árvores e cactos e a limiar da areia, enorme pedaço de areia, uma porteirinha de madeira e o mar lá embaixo. Mas do que tudo da praia sinto saudade do cheiro do mar. E do céu. Um céu que é só estrelas e por vezes lua também.
Tenho muito medo do mar. Quando estou no mar me sinto prestes a me perder... ainda mais quando a água está quente e viva. Parece algum lugar que já estive. Estado embrionário. Deito na quebra suave das ondas com minha bochecha contra a areia e vou sentindo a água e a areia me sugarem. As vezes prendo a respiração e afundo o nariz na areia também.
Esses momentos de entrega absoluta, quase sono, quase sonho, me fazem sentir bem, minha mente se esvazia e vivencio a paz por algumas horas...uma paz consciente, diferente da do sono, que é o vazio. Também gosto do vazio.
O mato aquele dia era tão verde-escuro que era quase uma coisa só com a noite que o cobria. Escutei um roçar de passos atrás de mim e vi minha irmã, o marido dela e minha mãe. Eles estavam alegres e conversavam. Esboçei um sorriso apesar de não sorrir por dentro.
"O que é isso? É um besouro? É enorme!"-disse minha irmã. Quando nos aproximamos notamos vários...se arrastando pela grama. Ela os iluminou com a lanterna e pra minha surpresa eram tatarugas bebês. Desorientadas, pobrezinhas, com o barulho, o mato e todas as coisas não-naturais. Estavam morrendo, algumas estavam muito machucadas, faltavam-lhe olhinhos, haviam sido pisoteadas por gente e pelos poucos carros de quem foi para a cidade para ver os fogos de artifício. Meus parentes foram dormir. Peguei a lanterna emprestada.
Chamei algumas pessoas da festa. Elas me ajudaram. Colhi tartaruguinhas até não ver mais nenhuma mechendo sobre a grama. Fiz isso até amanhecer. Fiz isso até todos irem embora e ficarmos somente eu e elas. Eu quase chorava.
Devo ter colocado na água mais de cinquenta. Algumas nitidamente feridas e sem a mínima chance de nadar ou sobreviver. Na verdade, queria que elas pudessem ao menos se sentir no caminho. Sentir a areia, sentir a água em suas nadadeiras frágeis. Elas estavam fracas, por mais que impulsionassem seus corpinhos, a grama as empedia de chegar até a areia. Os cheiros se misturavam demais para elas entenderem onde estava o mar e seguirem sozinhas. Sabe-se lá por quantos minutos ou horas elas haviam lutado antes de eu as encontrar.
Na verdade, sabia que estatisticamente, e em condições normais, somente 3 das 200 tartaruguinhas chocadas conseguiriam chegar à vida adulta.
Não me importava. Só queria que elas pudessem tentar. Só queria que elas morressem como tartaruguinhas marinhas normais.
Mais tarde fui entender. Eu era cada uma delas. Colocá-las suavemente na água, ainda que elas já estivessem morrendo, me tirava um pouco do caminho desconhecido e me levava para meu lar. Ainda desconheço esse lar. Tenho muito medo de morrer na busca sem nunca conhecer o mar ou a areia. Amanhece e meu cadáver está ali largado, sujando a trilha, mal-cheiroso e pútrido no meio das pessoas que distantemente esboçam alguma pena ou algum nojo ou me julgam vítima das circunstâncias. Uma tartaruga-mãe não deveria chocar tão longe assim do mar. 

O que vivenciei foi um pequeno e assustador milagre.

A Work Of Artifice

Vi jardins japoneses. Um monge disse que quem consegue contemplar a beleza das coisas singelas tem por certo um coração bom. Existe um conceito que considera o imperfeito uma arte, no mesmo lugar em que os bonsais são feitos exclusivamente por homens. Tradições milenares. Me lembrou um poema que gosto muito:

A Work Of Artifice
                Marge Piercy

The bonsai tree
in the attractive pot
could have grown eighty feet tall
on the side of a mountain
till split by lightning.
But a gardener

carefully pruned it.

It is nine inches high.

Every day as he

whittles back the branches

the gardener croons,

It is your nature

to be small and cozy,

domestic and weak;

how lucky, little tree,

to have a pot to grow in.

With living creatures

one must begin very early

to dwarf their growth:

the bound feet,

the crippled brain,

the hair in curlers,

the hands you

love to touch.

Por mais que eu tente fugir dessa imagem, ela volta e volta à mim constantemente. Minha mãe me criou para servir. Uma gueixa da vida moderna. Tento me convecer que ela não estava errada, que as mulheres gostam desse papel de serventia, que gostam de se vender, que gostam de ser um corpo sem alma. Mas percebo que a maioria não sabe o que acontece. Não são mais perceptivas do que o gado em viés do abate... ou uma tartaruga bebê que andou em sentido oposto ao mar e se percebe longe demais para correr pela vida mais uma vez.
Queria tanto o turpor da alienação. Queria a morfina de não-pensar sobre o que sou. Não consigo me achar com um coração bom ainda que tenha contemplado a beleza em tantas coisas. Tenho um coração doente. Ainda que tenho vivido momentos mágicos.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Rodeios.

Uma barata atrapalhou o meu sono. Ela entrou sorrateiramente em meu quarto e subiu no meu pé. Essa é a segunda vez que me acontece isso essa semana. Minhas gatas as perseguem e sempre as jogam em minha direção. Odeio baratas.

Conversei sobre (indiretamente) sobre gostar do meu corpo com uma ex colega de faculdade. Ela, para minha surpresa, reaparecu virtualmente depois de muitos anos para dizer que me admirava por eu não ter medo de ser quem eu sou. E digamos que sou praticamente a Beth Ditto em uma versão um pouco menos agressiva.
Peço desculpas ao leitor, esse meu amigo imaginário das minhas horas secretas e entregues à ele, por essa postagem tão alienígena. Não costumo falar "diretamente" sobre mim.
Mas sinto raiva. Primeiramente da barata, e hoje em especial das pessoas que praticam bullying com os gordos, dos gordos que não se defendem e também dos gordos que não fazem nada para mudar o peso e odeiam o próprio corpo.

Somos feios por natureza. Você que me conhece, sabe que não gosto do ser humano. Os gatos, cães e pandas bebês são muito mais bonitos do que nós... em todos os sentidos.
As pessoas acham natural vender seus corpos e a imagem de um corpo "perfeito". Acham natural vomitar por aí que gordo é feio e magro é bonito. Acham natural ter "pena" de alguém por ser gordo. "Coitadinha! Saiu muito gorda nessa foto!".
As pessoas, acham natural comer carne de animais que vivem em meio a sujeira, que têm a carne podre de cancêr, que são torturados desde o nascimento e rasgados vivos na maioria das vezes(na frente uns dos outros). Acham natural se esquecer que animais sentem dor, prazer e medo quando lhes convém esquecer.
Acham natural mendigar, reproduzir a cada cio, criar filhos subnutridos e negligenciados. Por vezes chamam isso de amor.
Somente o ser-humano, o gato doméstico, a orca e outros poucos animais não-citados gostam de matar como forma de entretenimento. O ser-humano, que é o único tido como dotado de inteligência e poder de escolha, também gosta de estrupar e humilhar.
Li no blog da Aninha um post sobre um tal "Rodeio de Gordas"(www.mundogege.blogspot.com). Intolerância e engasgo. É difícil me fazer chegar nesse ponto, e é bom, porque geralmente me deprime lembrar o quanto o homem é sujo. Fico me sentindo no metrô como o Homem Elefante do Lynch gritando "Não sou um animal. Sou um ser-humano." Dessa vez me sinto viva e certa do que eu sou. Me sinto tão melhor e mais forte do que esses ridículos, desprezíveis e horrorosos universitariozinhos de merda.

À eles, e a cada um que se acha melhor por não ser gordo ou acha que se simpatizar é ter peninha: FUCK YOU SO!!!!! Não precisamos agradá-los, não precisamos da opinião deles nem sequer precisamos deles at all. Sou linda e perfeita. E nesse mundo de MORONS, sempre achamos quem concorde que a verdade é uma questão de opinião. E que nós GORDOS, feios e vulgares, não saimos por aí vomitando nossas opiniões sobre valores estéticos.





quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Mortos sem lápide.

Talvez esteja na hora de responder uma pergunta que você me fez há muito tempo atrás. Você jogava sobre mim uma pilha de pequenas lembranças concretas, cartões, cartas, desenhos, fotos e aliança. Nessa época te disse a verdade. De fato não sabia o que fazer com essas coisas que ainda estão todas guardadas em um lugar reservado da casa. Como pequenos esqueletos de bebês natimortos no guarda roupa.
As vezes os visitava, como a viúva que manteve o corpo do marido amarrado à uma árvore e quando queria consolo ia até os ombros do fétido cadáver escorar delicamente a cabeça e contar sobre seu dia.
Mas talvez já seja hora de deixá-los partir.
Todos os beijos, momentos de silêncio, meu reflexo em suas pupilas, uvas brancas no reveillon, o barulho sincronizado do meu coração e da caixa de correspondência. Os desenhos em espirais e o nosso futuro assassinado por minha imaturidade e negligência.
Todos os retratos, pinturas, frases escritas no verso e pequenas caricaturas de nós como uma coisa só. As rosas vermelhas, o buquê de lírio, sua fantasia de colegial, o nariz levemente arrebitado, as orelinhas de elfo. Essas são coisas que sentirei muita saudade. Sua maneira de nunca me deixar dormir. Sua pintinha secreta e sua borboleta roxa. Te machuquei tanto. Nada justifica o que fiz. Nem mesmo o medo.
Alianças de prata com nomes gravados.
Talvez não doa tanto deixar vocês partirem. Já me livrei dos meus cabelos longos que você prendia ao me abraçar. Já me livrei dos meus cabelos loiros que você dizia ter muito verde.
Um dia que estiver sozinha aqui(porque isso é uma coisa que se faz quando ninguém está por perto), vou fazer uma pequena fogueira. Talvez dê um último beijo. Provavelmente vou chorar muito.
Talvez com a fogueira e as cinzas que se levantam com o vento, vou deixar algumas lembranças partirem também. 
Tenho que admitir que vocês se foram da minha vida há muitos anos atrás. Eu mesma já me fui, por tantas mudanças que ocorreram por dentro e fora. 
Portanto "Adeus meus amores". "Adeus" ao máximo que me é permitido despedir, porque parte de mim morreu com vocês. Parte de mim morreu com esse inesxistente nós. Vou carregá-los para sempre independentemente de me livrar de seus resquícios físicos ou não. 
Pois há um lugar na lembrança. Um lugar dolor. Onde se visitam os mortos sem ter necessariamente que se construir lápides. 

sábado, 25 de setembro de 2010

Insônia

Essa insônia de hoje é incomum. Insônia de tristeza. Estou tão triste que não consigo dormir.
O sono que sempre me descansa hoje me fugiu...e deixou um pouco mais difícil querer acordar depois que ele vier.
Morpheus me fechou a porta dos seu palácio. Não poderei visitar o Fiddler's Green e esqueçer de tudo.
Estou trancada nas horas de acordar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Dois tipos de guarda chuva de dia/noite sem chuva.

Ela era uma menina muito pequena que tinha muita dificuldade pra dormir. Imaginava e imaginava. Monstros que a devorariam ali, dentro do escuro do quarto, se escutassem a sua respiração. Então, encolhia debaixo da coberta e respirava o mínimo possível, imaginando-lhes as conversas, sempre como se tivessem em um cocktail. Ela era uma menina que imaginava muito.
Com a luz acesa era bem mais fácil. A irmã um pouco mais velha, que hoje já morreu, a fazia imaginar um João Pestana. Só que ao invés de algibeira com areia, este trazia um guarda-chuva e um pozinho mágico pra se jogar no olho e fazê-lo fechar de sono. O olho coçava.
O guarda-chuva, independente do clima do dia, estava sempre aberto, e já de longe, antes que ele caminhasse até a altura dos olhos(é preciso dizer que ele era bem minúsculo e o guarda chuva, nessas condições parecia bem grandão), logo se via se era um pesadelo ou um sonho bom. Se fosse um pesadelo ele era escuro igual ao guarda-chuva do papai, se era um sonho bom, ele era ainda mais colorido do que a sombrinha da mamãe. Era colorido das sete cores do arco íris, em gomos recheados delas, assim, como se fosse um guarda-chuva de praia. A menina não se importava com os dias de pesadelos, eles eram, em todo caso, melhores do que os monstros na festinha do escuro.
Um dia a avó, em delírio, velhinha e fraca, imaginava como a menina, coisas que na verdade não estavam no quarto. Imaginava e via, meninos que lhes roubavam os biscoitos embalde ela ralhasse: "Deixe eles aí! São dos meus netinhos, suas pestes!" outras, imagivana uma moça em seu quarto com um guarda chuva aberto. 
No mundo da avó, não se podia deixar a hóstia enconstar no céu da boca, ou se sentiria o gosto de sangue do cordeiro. No mundo da avó, guarda chuva aberto dentro de casa em dia de sol era mal agouro, trazia tempestades e tormentas, varrendo as hortas e as coisas da gente pobre que construia casa nos barrancos.
E a velhinha berrava para a moça fechar o guarda chuva. Implorava para que ela olhasse o sol lá fora. Um dia lindo e claro. Era um desespero muito próximo da mágoa, muito próximo da dor. 
A mãe da menina,tão sábia, foi ao socorro da senhora em prantos, e ordenou à moça que fechasse o guarda chuva ou então fosse embora. A avó então, enxugou os olhos e sorriu. 

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Meninas.

Minhas meninas estão crescendo. Mais da minha irmã do que minhas, eu sei, ainda assim minhas meninas também. Ainda ontem carregava uma delas no colo(eu era nada mais do que uma criança com modos de adulto... ah se pudesse, teria sofrido tão menos e deixado tudo pra mais tarde), cantando sabiá na gaiola, e olhando com um pouquinho de gastura(por causa da fragilidade) aquelas mãozinhas e pezinhos tão pequenos.
Ainda ontem(até os quatro anos) a mais velha respondia sem pestanejar que eu era a tia favorita se a perguntassem sobre suas preferências. Ainda ontem, essa morria de ciúmes do bebê mais lindo do mundo, sua irmãzinha, apelidada e com motivo, de bebê da Johnsons. 
É estranho vê-las se espichando assim... as preocupações com os garotos e com a opinião das outras meninas começando a aparecer, dúvidas quanto às roupas, novos cortes de cabelo, e a mais nova, apesar de ainda ter uma doçura maior de menina, menina mesmo, brinca cada dia menos de boneca.
Era o Natal do ano passado e saímos pra comprar sapatos... a mais velha exclamou "Tia, você me deu meu primeiro sapato de salto!"...ela me disse isso sem ao menos notar que o salto era de menos de cinco centímetros igual à alguns de seus sapatos de plataforma anabela. É que na verdade, ela me dizia que agora é uma moçinha: unhas pintadas, sutiãs e fotos de celular. 
Elas eram a espevitadíssima Branca de Neve e a sensível e romântica Cinderela. Ainda vejo aquele par de sorrisos, uma menininha segurando um porquinho da índia nas mãos e outra me pedindo para ler estorinhas na hora de dormir, as letrinhas ainda confusas demais para serem lidas por alguém tão novinho. 
Elas assistiam Dumbo ou os filmes da Barbie quinze vezes seguidas sem se enjoar; sabiam até as falas. Tinham muitas manias. Já deixei as duas se machucarem feio caindo( lá pelos seus 5 ou 6 anos de cada uma delas) mas não fui destituida do cargo de tia especial. Minha irmã deve saber que amo essas duas(três na verdade, pois amo minha irmã mais do que os irmãos geralmente se amam) mais do que amo a mim mesma ou a minha própria vida, apesar de nunca declarar isso à ninguém.
Por vezes esqueço que elas cresceram, mas elas o deixam, afinal sempre fui a tia-menina, e muitas vezes com elas eu me esquecia que havia crescido... e brincava de ponei ou fofolete como se tivesse menos de 10 anos de idade. Há uma mágica da infãncia que me comove. Uma mágica em que as angústias de adulto passam longe longe. Sofrimento de criança é coisa diferente. A imaginação sobrepõe-se à realidade chata, sem nem precisar de uma varinha de condão.
Ainda ontem assistíamos "A Bela Adormecida" juntas, as lágrimas sendo contidas e eu disse "pode chorar" e sendo respondida por dois olhinhos marejados e sensatos que sabia que era mentira...e eu respondia que mesmo sabendo que era "mentira" não tinha problema se emocionar.
Ainda ontem construíamos uma festa de Natal dos pôneis, com direito a piscina e banquete feitos com algumas folhas e casinhas de caixas vazias.
Ainda ontem eu me surpreendia por ser perguntada sobre o Bug do Milênio ou sobre o infinito. E calçava as sapatilhas em uma doce bailarina rosa pronta para pular carnaval(essa ainda vai ser minha menininha por mais um ano ou dois, uma menina mais moça talvez, mas ainda assim menina). Ainda ontem elas me vestiam literalmente de palhaço e se deliciavam de rir das minhas travessuras. Ainda ontem uma delas chorava de saudade da mãe fazendo de conta que era por causa do puxão que dei ao prender uma buchinha de cabelo.
Hoje saí para comprá-las um presente...e pela primeira vez ele não foi embrulhado no papel de bichinhos ou de balões.  

domingo, 13 de junho de 2010

Nojo.

Para ela as visões mais desagradáveis foram duas.
A primeira, o seu próprio útero refletido em um espelinho amplificador na sala fria da ginecologista: talvez por não ter conseguido relaxar enquanto aquele metal indiferente era empurrado para dentro de sua carne viva, ou talvez por não se sentir confortável em abrir as pernas ao máximo e ser examinada por dentro "Parece uma autópsia, só que com a pessoa viva"... ou ainda, talvez por esse mesmo útero sangrar todo mês, ela o achou horripilante naquele espelinho redondo: parecia um bife de fígado gigante, pulsando, pulsando, pulsando... e para piorar a médica ao mostrá-lo, exclamou "Olha como seu útero é lindo!"
A segunda, como não poderia ser diferente, foi no livro de Biologia... as pessoas no geral adoram colecionar fotos desagradáveis de doenças venérias, tumores, gangrenas e outras coisas dessa espécie nesse tipo de livro...mas o que achou deveras nauseante foi aquela ampliação do cravo de pele. Parecia saído do filme "O Ataque dos Vermes Malditos", um desses nas suas tripas, tudo bem, ela poderia viver com isso... mas bem na maça dos seu rosto?! Disfarçado de um pequeno pontinho preto, madito! Até hoje ela se olha no espelho e se arrepia toda ao ver aquelas pintinhas profundas que vivem de comer a sujeira que se encrosta no tecido epitelial, independente de quanto sabonete se use.
Se pudesse pensar em um mundo perfeito, ele não teria parasitas foliculares.      

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Little Yellow Flowers

As I was walking down the street
I could see tiny yellow flowers
streching their tiny little leaves
from the sidewalk
I could not help staring at them
for their minuscule beauty was
both strong and delicate
around their greenish-brown bushes
stone sober pavement
They do not claim to be seen
once they are such small and naive beings
Scarcely had their fresh smell and exquisite color
been felt before that day
That day the moon was a brightly silver eye
Where the concrete dies.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Vincent disse:

"La tristesse durera toujour" A tristeza durará para sempre...

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Maliciosa

Quando ele me abraçou, daquele jeito nem de irmão, nem de amigo... parecido mesmo com jeito de namorados... exceto pela respeitosa distância entre nossos corpos... não pude deixar de notar o quanto ele tinha os braços grandes e fortes. Enlaçavam facilmente, pousando ambivalentes, suaves e másculos sobre meu colo... não há como descrever a delicadeza desse gesto que foi tão dele... aprisionar gentilmente. Um sorriso malicioso brotou em mim... o sei de certa maneira meu... bastava um leve inclinar da minha cabeça para dizer que queria mais do que o que tive.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Not mean, but be e algo sobre a mediocridade dos pseudo artistas.

"Os críticos elogiam essa perfeição técnica que, no fundo, nada significa. A arte é uma coisa cruel(...)a pintura é como uma janela que abre para o fundo do nosso coração. Tudo o que vc fez nessas pinturas foi abrir uma séria de pequenas janelas para um coração cheio de pintures em voga(...)Você aqui está dizendo alguma coisa sobre Nicholson ou Pasmoere. Não sobre si própria. Está usando uma câmera. Tal como um trompel'oiel é fotografia mal canalizada, o mesmo sucede quando pintamos no estilo de outra pessoa. Você, nesta tentativa, está fotografando.Nada mais" G.P para Miranda(em O Colecionador de John Fowles)

A arte vazia é horrível, existência repugnante e pior do que a ausência da arte. Escritores que são adorados por escrever o banal de maneira banal, assim como os supostos artistas "mestres da técnica". Na minha opinião, quem não é reconhecido e é ao mesmo tempo popular não é verdadeiramente bom. Há um porão onde se escondem os grandiosos artistas, e nunca pousaremos nossos olhos nas coisas que eles conjuram...porque nossos olhos estarão confusos demais para distinguir o que é real e o que é medíocre. Estamos saturados de mediocridade. Despreso pessoas medíocres. Imitadores. Pessoas vazias que se auto entitulam algo. A Arte, por ser uma criação unicamente humana, tem em sua forma uma anatomia que pertence ao seu criador, uma sordidez triste triste, o lado só sombras. Admiro muito os que conseguiram se mostrar sem ter que se vender ao populismo. Talvez tenha sido preciso cortar uma orelha e enlouquecer ao final do processo. Mas tendo a achar que os artistas verdadeiros vivem sempre no limiar da insanidade. Talvez por enxergarem as coisas mais brilhantes do que de fato são. Eles foram de fato grandes.
Não sou uma artista, e nunca o serei. Nessa vida, ocupo o posto de admiradora. Minha alma envelhecida assume manias e temperamentos obscuros. Minhas atividades artísticas nada mais são do que atividades. Não escrevo esse texto sobre o que eu faço. O que eu faço é nada. Escrevo esse texto de puro cansaço e também  em admiração ao Fowles que conseguiu com tão poucas palavras externar o engasgo que eu sempre tive quando me perguntam se acho uma coisa ou outra bonita.
Alguns escritores nunca amadurecem e em seus livros de centenas de páginas falando sobre suas vidinhas ordinárias não encontro uma única frase que me comova.São os textos de adolescentes pretensiosos que acham que vão chocar o mundo com suas posturas arrogantes e agressivas. Uma intimidação falha faz um adulto não passar de um adolescente cruel e tirano. 
Há uma beleza em se falar de coisas feias e banais. Lembro me de ao ler "A Portrait of An Artist as A Young Man" do James Joyce, dentre todas as coisas que li nesse livro, coisas complexas e graves, ter me emocionado com a descrição de uma criança molhando a cama. "When you wet the bed, first it is warm then it gets cold. His mother put on the oilsheet. That had a queer smell".
Não condeno os best-sellers, alguns são para nos entreter e é um erro procurar metáforas bonitas neles... pode-se passar horas seguidas preso em um livro desses e isso é exatamente o que os tornam especiais. Mas admirar um escritor pop é o mesmo que se apaixonar por o roteirista de uma novela. 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Lucy.

Ao ler o livro O gato por dentro de William Burroughs, lembro-me de ter ficado chocada com uma cena: um cão alegre e estúpido, abanava o rabo enquanto mastigava o rosto do cadáver do dono.
Talvez não tenha me identificado tanto assim com o autor, não nessa parte de ódio ao cão. Prefiro gatos, isso é sabido, mas também gosto de cães. Na minha lista de favoritos estão em primeiro lugar os gatos, depois os cães, em terceiro lugar os porquinhos da índia e em quarto lugar os cavalos, coelinhos e demais animaizinhos. Os passarinhos ficam de fora. Assim como os peixes e os demais que foram feitos pra serem livres e só gostam de gente se forçarmos muito a amizade. Peixe-beta não conta porque ele gosta de ficar sozinho e um aquário médio é mais do que suficiente em termos de espaço.
Os porquinhos da índia merecem o terceiro posto porque fazem um barulhinho fofo ao andar, e é divertido assistí-los triturando com seus dentinhos qualquer folha cumprida que a gente os dê.
Acho que nessa minha vida sou mais gato do que cão. Apesar da minha permissividade e lealdade exarcebada, sou reservada e sistemática com a maioria das coisas. Não gosto de carinho o tempo todo, adoro dormir e me esticar preguiçosamente durante o dia. Gosto mais de mim do que das pessoas, gosto mais dos meus gatos do que das pessoas. O gato é tão elegante, é tão livre... mas as vezes eu me percebo mendigando uns minutos de atenção ou um carinho... eles me toleram, mas não se doam o tempo todo. Quando eles querem, eles fazem. Quando não querem, ou te toleram ou te ferem. Não há como se chatear, é a natureza deles. O gato te faz olhar dentro de si. Perceber suas fraquezas, detestar seu próprio cheiro e admitir sua carência. O gato é o amor coberto de racionalidade. O amor franco demais, o amor tênue. O amor da conquista constante. Por isso são tão temidos. Mas não são traiçoeiros, o gato é completamente previsível em sua inconstância e é exatamente esse o seu charme. O gato é dele mesmo.
Sabe, não vai me fazer mal ter um cão. O cão atrapalhado, afobado. Que se mija de excitação com o simples brandir de uma corrente. O cão é um animal de atitudes exageradas. O cão grita que te ama o tempo todo. Ele não deixa subtentido em um leve roçar ou se esgueirando furtivamente para se aconchegar entre suas pernas. O cão diz: "Olha pra mim! Olha pra mim!" e salta, e uiva, e abana freneticamente seu rabinho e lambe as mãos do dono. O gato age como se não estivesse sendo observado, e quando não, é ele quem nos observa: no chuveiro, durante o sono ou ao assistir televisão. Você sente um pequeno calafrio e quando olha para o lado, encontra pousados sobre você aqueles pares de olhos bonitos. Os olhos mais bonitos que a gente já viu.
Nós humanos somos muito chatos. Por mais que se evite dizer, estamos infelizes por mais tempo do que ousamos demonstrar. Acho que o amor desmedido e estúpido do cão diminuirá as minhas horas de tristeza. Pelo menos ao encontrar o meu amigo leal, amigo canino, poderei me iludir com uma grandiosidade gratuita, poderei ser o objeto de desejo e atenção integral, sem ter ao menos, que me cansar com a conquista. Nunca me faltará afeto. Será eu afinal quem vai dizer "chega, já entendi". O amor perfeitamente idealizado. Minhas manhãs e noites serão mais felizes com a Lucy por perto.  

domingo, 4 de abril de 2010

O Rabinho.

A menina nasceu com um rabinho. Ele era diminuto e singelo, no encontro entre as suas costas lisas e suas nádegas redondinhas. O rabinho era completo: carne, pele e osso. Ela conseguia movê-lo se quisesse. Mas não era simples como mecher um dedo... era mais como quem consegue mecher as orelhas. Gastava concentrar-se. A mãe a instruiu a deixar o rabinho sempre escondido...porque ela era única no mundo e as pessoas morrem de inveja de quem é diferente e tendem a ser cruel. Ela escondeu o rabinho por toda a sua vida, mas não deixava de achá-lo bonito e de se achar uma mulher especial. E se porventura o revelasse à alguém, esse alguém era marcado para sempre...e se tinha alguma saudade, essa saudade era ainda maior, porque não havia no mundo alguém que houvesse namorado duas meninas assim.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Obscura.

Meu irmão diz que sou obscura. Ele diz que construo um muro e me escondo atrás dele. Um muro intransponível. Me pergunto se ele nunca cogitou ler esse blog. Tenho aqui contos de quando eu ainda estava em Belo Horizonte. Tentei, tentei e tentei... mas ainda continuo a menina morta-viva com esqueletos no armário. Esquivo da meu convívio familiar e dos meus problemas com a construção de metáforas. Tento achar algo bonito no meio dessa dor. Tento significar. Porque se há uma coisa com a qual convivo desde sempre é a dor. Minhas dores. Meu cansaço. Esse, grande a ponto de me fazer identificar com um suicida.
Quando digo pra mim mesma que estou feliz, o sofrimento chega com as suas navalhadas impiedosas, corta fundo a minha carne e me destrói. Sofro de uma condição nada rara. Luto diariamente com minha depressão... tampando um buraco aqui e outro ali pra parecer alegre no final. Mas nunca deixo de ser uma boneca recheada com falsas felicidades e dona de um sorriso paralítico.
Não sei o que é lar. Nunca tive um. Tenho tanta inveja dos outros que chamam essa maldita casa de lar deles, ainda que eles tenham suas próprias casas e famílias. Eles puderam ficarf aqui até depois dos trinta. E eu desde os 19 sou expelida para fora desse útero. Aborto humano. Minha mãe me mantem aqui como um feto natimorto. Lembro da minha voz gritando, a voz de uma menina de 13 anos, gritando que nem mesmo as portas eu posso bater, afinal, não foi com meu dinheiro que elas foram compradas. Achei que melhoraria algo quando eu pudesse ajudar financeiramente. Me enganei. Continuo sendo a intrusa. Talvez os narizes sagazes dos meus irmãos farejem que esse lugar não me pertence.
Foi dentre essas portas que vivi meus maiores horrores...horrores que não saberia descrever. Essas portas que nunca foram minhas, e portas que odeio tanto. Portas que personificam a minha angústia de viver uma vida dos outros. A Mariana morta. A irmã caçula. Essas portas não são minhas nem quando as bato com ódio. São as portas da casa da minha mãe. Portas que nunca respeitam o meu silêncio ou o meu grito. Portas que não conseguem me fazer sentir protejida, sentir em casa, descansar o descanso merecido, dormir o sono dos justos, ter uma vida só minha. Viver.
Meu lar sempre foi outro. Meus gatos, e essa tela cheia de palavras. Moro nas palavras. Quem as lê, lê também a minha alma. Minha alma está presa em meus dedos. Não consigo falar, só escrever.
Me extendo por essas linhas extras por medo de ter que voltar a ser a Mariana-morta. Aqui e vivo, aqui eu posso ser sincera. Aqui me compreendem.
Ainda sou a assassina de mim mesma. Ao passo que não abandono esse lugar. São tantas desculpas: meus gatos, a falta de dinheiro, a carência da minha mãe, afinal, é comigo que ela se senta a mesa para almoçar. As roupas sempre lavadas, o cheiro de limpeza da roupa de cama, o almoço servido. Mas não é isso que me mantem aqui. Não é. O que me mantem aqui é o meu ódio, não o meu amor. Me odeio, e gosto de sofrer. Gosto de ser a vítima. Hipócrita vítima. Talvez não goste de viver. Talvez nunca tenha aprendido a fazê-lo. Talvez nunca tenha tido espaço físico para isso. Não um espaço meu.
Mas estou decidida a partir.
Como falar de amor depois de tudo isso. Minhas costas dôem, meus olhos estão inchados e minha cabeça também está doendo. Mas é preciso um parêntese. É preciso dizer que quando eu partir um dia...se partir sozinha, amei você, Fábio, muito. Ainda de te amo muito e é uma pena que não saiba te amar da maneira que você merece. É uma pena não te poupar dessa minha ignorância emocional. Você não merece alguém com a alma estilhaçada.

terça-feira, 30 de março de 2010

Relato: Borboleta de casulo de mariposa

O ser humano é um animal triste. A sensibilidade torna as coisas pequenas em memoráveis. Tudo que é belo é um pouco melancólico. Se fôssemos simples gatos, preocuparíamos apenas em nos limpar com a língua áspera e pequenininha, ignorando o universo dos outros milhares de gatos. Os gatos são os animais mais livres que já conheci.
Entendo quando comparam, por exemplo, um facínora com uma besta selvagem. Tal como a besta, o criminoso é alheio à sua humanidade e por não vivê-la, não se identifica com uma lágrima ou com uma gargalhada.
Mas nada explica o suicida. Nem mesmo a Sophia Coppola e suas virgens castradas. Por isso o suicídio é tão terrível. Não há morte mais triste. Talvez porque com cada suicida, várias pessoas-inclusive eu-pensem também em se suicidar um pouquinho e temem que o mundo termine em um caos de pés que se balançam longe do chão. O ultimato da escolha. A única escolha que se faz sozinho... que como uma mariposa imponente rasga seu casulo e esvoaça em nossas mentes de tempos em tempos.
Opção desconsiderada. Portanto, nem se deve ser chamada opção. É mais uma coisa.
Coisa com a qual me deitei algumas vezes. Afundei a cabeça no travesseiro e suspirei ignorando-a. Deixar de existir. De ter dores, minhas dores inventadas e tão particulares. Viver cansa. É como se cada vez que o ar entrasse pelas narinas, ele fosse sôfrego e pesado, mas basta prender o ar por dois segundos para se desistir. Se eu pudesse simplesmente sumir já o teria feito a cada ruflar dessas asas.
Penso se não é algo que tenho em comum com todos os seres humanos, que por natureza são tristes. Penso o que nos mantêm afastados do suicídio. Penso nos meus cigarros e no câncer de pulmão. Escolhas. Ontem li: "sem meus cigarros eu morro" e a frase me pareceu absurdamente verdadeira. Morro com eles e sem eles.
A vida é um beco sem saída onde no fim se entrega o óbolo ao barqueiro sombrio querendo ou não. Todos teremos afinal, as moedas por sobre as pálpebras rijas. Isso é natural. 
O que nos faz tragar cada pedaço dessa vida? Medo da cinza chegar até o filtro? Amor? Masoquismo? O outro? A "natureza"? Muitos diriam que o medo do que virá depois do último trago. O ser humano é metódico e sistemático. Todos sem exclusão temem o desconhecido com o medo mais infantil e enorme de que se é possível lembrar. 
A imaginação é minha borboleta. Disse alguém de dentro de um escafandro. O escafrando é uma prisão em que se é permitido apenas piscar.
Nesse momento, tão grave, devemos abrir todos os casulos(de outro arthropoda). 
Podemos então, pegar uma corda em volta de um pescoço e transformar em um rabo longo. Dedos tensionados em garras retráteis dentro de uma patinha fofinha. E o som da última tentativa de inspirar e transformar em um miado louco e selvagem. Um miado de alguém que de agora em diante se ocupará penas de caçar borboletas, espreguiçar de maneira elástica e ser o mais livre dos humanos.   

(Para uma menina quase desconhecida e muito impetuosa)

quinta-feira, 18 de março de 2010

A girl to remember

Tinha passado por um momento terrível. Alguém que tinha sido parte de mim por quatro anos não cabia mais em meus planos futuros, e o horror e o surrealismo de toda a situação era que essa mulher tinha sido a companheira perfeita e não havia desculpa alguma para a minha atitude. Eu não a queria e ela ainda me amava.
Hoje vejo que a mantive indefectivel como a Lady Di ou o J.F. Kennedy. O rei-morto, que para se tornar um deus precisa do ápice da perfeição: a desvinculação com a vida mundana/humana, afinal, ninguém pode confiar na perfeição que não seja efêmera. Essa mulher, minha mulher, vai ser lembrada como a melhor que tive enquanto eu existir. Não sou capaz de enumerar um único defeito, e se me perguntam sobre ela, digo que foi meu único namoro "passado" que foi significante.
Mas minto. Como omitir as manhãs que outra me manteve acordado. E as noite de sono que ela ainda me tira com pesadelos. Algoz, algoz, algoz. A culpa é a maior das torturas a se carregar. A culpa seria, ao meu ver, as correntes de incontáveis nós carregadas pelo suposto fantasma do Scrooge de A Christmas Carol do Dickens.
Nunca imaginei que aquela garota de roupas descoladas e um jeito meio etéreo seria minha. Na  verdade, mais do que imaginar, eu a desejei. Do jeito com que se deseja coisas intangíveis. Um nariz pontudinho e arrebitadinho, as orelhas élficas e as pernas longas em relação ao torso. Nunca me esquecerei de como o sol desenhava as luzes na blusa multicolorida e a beleza felina daqueles dedos longos. Tinha algo felino na maneira como ela se espreguiçava ou estalava os dedos.
Ela foi a única pessoa que me deu flores.
Ela é uma música do Nick Cave. O era mesmo antes de saber como tudo acabaria. Embriaguez, murros na parede, e a distância instaurada entre aquela menina frágil e a fera interna.
Ela era mais intensa do que eu poderia aguentar. E não consegui partir sem partí-la.

Nobody's Babe Now - Nick Cave and The Bad Seeds
(A Garota de Ninguém)
 I've searched the holy books

(Procurei nos livros sagrados)
Tried to unravel the mystery of Jesus Christ, the saviour
(tentei revelar o mistério de Jesus Cristo o Salvador)
I've read the poets and the analysts
(Eu li os poetas e os analistas)
Searched through the books on human behaviour
(pesquisei nos livros de comportamento humano)
I travelled the whole world around
(eu viajei por todo o mundo)
For an answer that refused to be found
(por uma resposta que se recusa a ser encontrada)
I don't know why and I don't know how
(Não sei por quê nem como)
But she's nobody's baby now
(mas ela não é a garota de ninguém agora)

I loved her then and I guess I love her still
(eu a amava e acho que ainda a amo)
Hers is the face I see when a certain mood moves in
(é dela o rosto que eu vejo quando certo humor se instaura)
She lives in my blood and skin
(Ela vive em meu sangue e pele)
Her wild feral stare, her dark hair
(Seu olhar selvagem, o cabelo escuro)
Her winter lips as cold as stone
(Seus lábios de inverno, tão frios quanto pedra)
Yeah, I was her man
(sim, eu foi seu homem)

But there are some things even love won't allow
(Mas há coisas quem nem mesmo o amor permite)
I held her hand but I don't hold it now
(Eu segurei a mão dela mas não a seguro agora)
I don't know why and I don't know how
(Eu não sei por quê e nem como)
But she's nobody's baby now
(Mas ela não é a garota de ninguém agora)

This is her dress that I loved best
(esse é o vestido dela que eu amava mais)
With the blue quilted violets across the breast
(com as violetas azuis entrelaçadas ao redor do seio)
And there are my many letters
(e essas são as minhas muitas cartas)
Torn to pieces by her long-fingered hand
(Rasgadas em pedaços por aquelas mãos de dedos longos)
I was her cruel-hearted man
(eu fui seu homem de coração cruel)
And though I've tried to lay her ghost down
(e apesar de tentar afastar de mim o fantasma dela)
She's moving through me, even now
(ela se aproxima de mim ainda agora)
I don't know why and I don't know how
(Não sei porquê nem como)
But she's nobody's baby now
(mas ela não é a garota de ninguém agora)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Saudade Legítima.

A verdadeira vela póstuma, ao chorar sua cera, diz "Saudade!" ao invés de "Adeus".

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Cansaço.

Paralíticos. Um momento em que todas as palavras e ações se repetem nauseadamente. Qualquer coisa é enfadonha e ordinária. O lumiar da lua não passa de um reles lampião. O cansaço é um bebê nati-morto. O corpinho desfalecido cisma em tombar dos braços, embalde sua mãe o agarre e lhe ofereça a teta seca. É quando as palavras se juntam com mediocridade e a mente usa artifícios falhos para se mostrar em pleno funcionamento. Se engana. Os espelhos são todos falsos. E um espelho falso nada mais é do que uma tela pintada por um leigo sem talento. Por mais que se trabalhe os entalhes da moldura, as pinceladas são débeis e a imagem final distorcida e clownesca.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

É isto um homem?

Uma moça tinha perdido alguém muito importante e para se tratar colocava-se a cantar as notas peculiarmentes tristes de seu violão naquele dia. Ela é uma daquelas criaturas livres e etéreas que quando te tocam, com mais leve que seja o roçar de uma mão ou de um lábio, fazem correr por dentro um impulso elétrico. Seria bem capaz de ficar perdida para sempre em seus fios de cabelos, me mudar para Faerie e viver cantando e roubando as crianças dos humanos, ou ainda, viver a função mórbida de anunciar aos pobres moribundos que é chegada a derradeira hora.  
Ela cantava e tocava, todos nós, a sua volta, fingíamos que éramos o mesmo, ou que não éramos na verdade, indiferentes a sua dor. A simpatia é algo que dura apenas enquanto os olhos pousam na face infeliz, só virar o rosto pra voltar para a nossa auto-piedade que é mais forte que a própria verdade da vida.
A grama era mais fofa do que parecia e curiosamente nova para mim. Nem ao menos a tinha notado ao passar por aquele trecho tantas vezes. Eu era uma estranha naquele grupo, e não sei bem ao certo, que feitiço ou que feitio me fez ter ali presa. A cabeça levemente inclinada, as pernas com caimbra por ficarem dobradas. 
Acendi um cigarrilho especial. Só meu. Estivera guardando esse para algum momento atípico. Para não ter que dividí-lo, fui até um  bar próximo e comprei alguns outros de palha para os demais que entenderam perfeitamente meu recado.
Não me demoraria ali. Quando a cinza tocasse o filtro eu me despediria e continuaria o caminho até minha casa. O cigarro de certa maneira era também o meu relógio de areia. Um feitiço para quebrar outro.
Uma moça causou algazarra com um grupo de cruéis rapazotes. Eles tinham um som ligado alto(que nos obrigava a também cantar alto para apagá-lo) e ridicularizavam a maneira com que ela se vestia e portava. Logo percebi que ela era um zumbi. As roupas minúsculas e sujas, o cabelo desgrenhado, as pupilas dilatadas e brilhantes. Estava ali alguém a quem restava pouco de sua própria alma. 
Não sou melhor que ninguém por ser dona da minha sanidade. Não posso julgar ninguém além de mim. Afinal, quem define qual dor é maior. Dores são dores. Não posso ter compaixão do sofredor nato e não ter de quem é culpado de sua própria dor. Acho que entendo isso bem, uma vez que sou assassina de mim mesma.
Ela se pediu pra sentar conosco, e logo depois se pediu para sentar ao meu lado. Eu permiti. Ela então recostou sua cabeça desvaneicida rapidamente sobre meu ombro, gesto infantilizado para uma mulher que provelmente havia sido estrupada e surrada repetidamente e a quem não restava senão o corpo para se vender. Um corpo sem alma já não responde mais por si.
Tive um pouco de nojo. Se ela tivesse permanecido com sua cabeça sobre meu ombro eu teria logo antecipado minha partida e fugido dali...como foi um gesto tão rápido não reagi. Ela havia tido um abrupto lampejo sobre suas próprias condições e evitou mais uma humilhação se afastando de mim antes que eu mesma, obrigatoriamente,o fizesse.
Estava prestes a se estilhaçar... dos olhos dela saiam pequenas lágrimas, desciam oblíquas pela pele queimada de sol e empoeirada, lavando as maçãs de seu rosto a mediam que corriam. E aquilo sorria. Sorria! O sorriso insano do limiar da loucura plena. Queria poder abraça-la, dizer que tudo ficaria bem, fazer falsas promessas. Mas as injúrias que partem a alma são mais terríveis do que as que convalescem o corpo pois todas são tão fatais quanto um câncer. Qualquer doença desumaniza. O corpo apodrece a medida que a alma se afunda na obscuridão. O ser é transformado em todos os monstros relatados pelas Artes, a Criatura, o lobisomen, o morto-vivo e a temida bruxa, quando não o Minotauro, pobre filho das circunstâncias, exilado e condenado a ser um devorador de homens. 
Ou se tornam animais invisíveis.
"Me dê um trago do seu cigarro!"- clamou aquele lábio tremulante, que com esforço imensurável segurava um sorriso.
De qualquer maneira, estava além da minha capacidade natural fazer qualquer coisa além de vê-las. Me pergunto se exatamente isso, enxergá-las e não ajudá-las, fazia de mim um ser humano ainda mais desprezível e odiável do que os que simplesmente escolhem não enxergar os miseráveis.   
"Eu te dou o meu cigarro inteiro!" - mas eu sabia que não era essa a questão.
"Nãooo." começou a chorar, agora com soluços "eu quero só um trago!."
"Não posso."(Não queria dizer "não consigo")
"Por favor!! Não vai estragar sua saúde, eu prometo"
Ela só queria ser tocada. Só queria ser humana de novo. Eu também estava entrando em desespero. Me sentia completamente vil ao ter minha limitação escancarada assim dessa maneira: como a porta de um hospício ao receber mais uma leva de loucos.
"Por favor."
"Só um trago."
"Por favor.."
"Por fa....",cada vez mais fraca, e a cada segundo de silêncio aumentava-se a intensidade das lágrimas e mais se desfigurava aquela face.
"Não divido meu cigarro nem com os meus amigos! Pode perguntá-los". Foi o máximo que consegui fazer. Uma mentira. Uma meia-verdade. Ela os procurou com o olhar perdido, angustiada por uma resposta. Estavam todos horrorizados, como se subtamente estivesse ali o monstro pessoal de cada um deles. As faces empalidecidas, os olhos arregalados e a inércia da surrealidade da situação. Um deles, por fim, gaguejou que era verdade. E apontou com seu longo indicador de pianista os cigarros de palha espalhados pela grama.
Dei à ela a metade final do meu cigarro. Disse à todos que tinha que ir... e eles, pobres crianças assustadas se levantaram um por um -cruelmente, instintivamente buscando por proteção ou talvez apenas aliviados- eles me abraçaram(alguns eram desconhecidos). Ela também se levantou. Estava feito. Eu conseguiria afinal abraça-la, sendo deixada assim sem alternativa. Pensei que não seria tão ruim. Estava a apenas uns seis quarteirões da minha casa, e poderia ir direto para o chuveiro quando chegasse. Nenhuma doença infecto-contagiosa sobreviveria a bastante água e sabão, nem mesmo sarna. Minha pele estava sadia, sem nenhum corte e minhas roupas eram bem fechadas. 
Mas ela se conteve.
No canto entre uma banca de revistas fechadas, dançavam, com o brilho espectral da noite, alguns negros sacos de lixo. Sobre a calçada imunda escorria um lastro de restolho. Alguns folhetos de propaganda política voavam aqui e ali com marcas de pisoteamento. Uma sombra viva se projetava por trás da banca. Pensei ser um rato ou um cão vadio, mas era um homem.   

    

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Carnaval em Mariana

Carreguei meu corpo cansado até lá. A cidade parece uma casinha de boneca construída com o suor negro. Fé e escravidão. Exageros barrocos.
Em lugares assim não é difícil se sentir alienígena. Os turistas se destoavam dos demais. O apetite por fotos do sacro e do profano tão interligados... mas não seria isso o Carnaval?!
Meu tênis feito para cidades planas e asfaltadas me castigava, pedra por pedra "ai ui", dançar era difícil mas não deixei de fazê-lo.
Duas crianças pobres pediram para encostar nas minhas tatuagens, não acreditavam que eram de verdade. Suas mãozinhas sujas alisaram minha pele com a delicadeza de quem toca pela primeira vez uma porcelana chinesa. Era como se elas pudessem me quebrar. Dei picolé para elas e a moçinha(mais moderna que o garotinho) se despediu de mim dizendo "Tchau amiga".
Em Ouro Preto e no resto do Brasil, as pessoas se preocupam em se embebedar e devorarem umas as outras. Acho que esse é o Carnaval dos tempos pagãos. Festa da carne. 
O Carnaval de Mariana sempre me surpreende. É mais do que celebrar o corpo, é celebrar de fato, o sangue a correr pelas veias de nosso espírito. Sem tradição as coisas novas morrem, disse Freddie uma vez. Pessoas. Na concentração da escola de samba, uma mãe puxa a capa de sua filha semi-nua e diz "Já que é pra mostrar, mostra tudo!" e me reencontro com elas no desfile. A filha segue na frente com o seu corpão, e a mãe, também pelada, ostenta um enorme sorriso orgulhoso. 
As mulheres que vi nas escolas eram de verdade. Celulite, barriguinhas e estrias. A peculiaridade de cada uma dessas curvas me fez sentir muito bem. É muito mais bonito assim do que o Carnaval das mulheres de plástico(a) que a gente vê na tevê. A gente se sente mais real e feminina. Só acho atraente a mulher que de fato existe.
E quando irrompe no desfile as passistas semi-nuas acompanhadas do delírio da platéia masculina, meus olhos encontram curvas ainda mais sinuosas. Muito acima do peso. Grandes deusas da fertilidade de fio dental. Os seios fartos e as barrigas se abraçando. Senti tanto orgulho delas! É tão emocionante ver as pessoas se amando a ponto de dividir com os outros a sua própria nudez. Para a maioria das pessoas seria uma visão bizarra, mas tenho certeza que elas, as musas, se sentiram idolatradas por cada um de nós que as amamos e desejamos.
Quando o Zé Pereira da Chácara enche as ruas com seus muitos bonecos gigantescos me sinto em uma terra estranha de gigantes deformados. Fico tomada por um sentimento infantil... medo e fixação. Os meus olhos ficam vidrados naqueles seres estranhos de taquara, minhas pernas se paralisam e eu quero fugir mas quero ficar. É um sentimento de terror que por fim se dissipa-não me esmagaram, afinal.
Os bonecos do Catin são diferentes, eles são todos movimento, a expressão congelada parece mudar a cada nuance e me espanto pensando que na verdade são eles que nos assistem e não o contrário. Enquanto eles dançam bolero, tango e samba, a Banda Navegante se explode em som. O sol frita meus miolos, mas eu continuo ali, dançando com cada um dos bonecos e até esqueço que minha pele se derrete.
No último dia, fui no Circo Volante ver uma apresentação da Samba no Pé-de-moleque. A Frida e suas sombrancelhas marcantes, fantasia curiosa, segurava em suas mãos um violino totalmente artesanal. Palhaços de perna de pau. Palhaços cuspindo fogo... e enquanto isso música! Íamos dançando e brincando de ciranda. Todos desconhecidos, de mãos dadas como crianças, girando, girando no meio da rua. Saudando os palhaços, os oratórios e o sertão. Cantando em unissono que o axé é chato. Voltamos todos no tempo: crianças, idosos, muitos jovens e agora tinhamos todos a mesma idade. Brincando juntos de Carnaval.
Depois, terminado o cortejo, uma dama pega o microfone e com sua voz de sereia canta as marchinhas de quando era moça. Os olhos cheios de vida. Senti a falta dessa época que nem vivi.
Em frente às muitas Igrejas, pendiam os mastros decorados. A cidade florescia papel reciclado, o céu muito azul, repleto de borboletas de garrafa pet. E no chão, as pessoas se lembravam de pedir desculpa se eventualmente se trombassem. Casas de quinhentos anos com carros de modelos novíssimos estacionados à frente. Na rua de pedrinhas um moço passa vendendo algodão doce colorido. Agora, a saudade.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Beleza Maior.




Com o rosto afundado entre aqueles seios fartos, ele pensa em divindades da fartura, da fecundidade e do deleite erótico. Aquele mar extenso de ondas macias e quentes, carnes perfumadas era também a personificação da feminilidade. A fala amendoada, os olhos lânguidos e a boca acetinada que lhe faziam carícias inimagináveis.
E o mais extraordinário de tudo, é que as vezes, ela buscava amor, pequena e fraca,quase moribunda,  por fraqueza de se sentir tão diferente.
"Ora!" dizia ele "é que o mundo estúpido não está acostumado com as proporções da sua beleza!"

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Raquel.


A fumaça sai de sua boca e brinca um pouco antes de se transformar em mais uma estrela. Quando está escuro assim a brasa do cigarro parece um pequeno vaga-lume artificial. Raquel brinca com seu cabelo sem se importar com o cheiro do tabaco em seus dedos- porque ela é livre. Mas na verdade esse é um gesto de pura tensão.


Apesar da noite ser tão bonita e escura vista assim do campo, ela não consegue parar de pensar na fotografia que ela deixou em casa. Na gaveta da mesa, com alguns poemas e o esboço de uma carta a ser escrita, talvez a última carta, certamente a última para aquele endereço.


A foto é de uma garota que ela viu no metro. Ela estava sentada em cima da sua própria bagagem, uma mala velha de couro, se encolhia  dentro do casaco por causa do frio, as bochechas eram rosadas e de suas orelhas saiam dois fios. O cabelo era preto com mexas azuis, um azul bem anil, azul de mar profundo. Raquel se viu distraida olhando aquelas ondas de fios quando seus olhos encontraram o rosto da garota. Ela pensa nunca ter visto um rosto mais triste que aquele.


Ela tentou se olhar no espelho e dizer que era mais triste que a menina com os fones de ouvido, mas não conseguiu, e a maneira com que ela viu a fumaça do cigarro naquela noite lhe dava uma dica porque ela não era assim tão infeliz. Certo era que ela se perguntava o tempo todo...se perguntava se ela mesma não era um sonho de alguma outra pessoa...


Não pertenceria a ela.(Como as palavras trocadas nas cartas que)certamente eram coisas alheias...coisas que se fermentavam em um futuro ficcional e um sentimento bobo. Roubaram minha alma, pensava.


E tremia ao cojitar que tudo podia não passar de mentiras de outro alguém. 



segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Cão e A Pardal(adaptação de "The Dog and The Sparrow", dos Irmãos Grimm)

Um cão, com o passar da estupidez infantil de seus primeiros anos, decide fugir de seu dono e seus constantes mal-tratos. "Ora!, pensa, por mais fome e cansaço não passarei, já que trabalho todo o dia e de noite guardo a fazenda, sem que eu mereça uma migalha de pão do café da manhã dos humanos".
E antes que dessem por sua falta, roeu a corda que lhe prendia à bancada da varanda e seguiu muito seguro em direção a cidade. O dia não tardou a amanhecer e o sol lhe fervia os pobres miolos, sua língua pendia de sede. Foi quando avistou uma sombra fria e generosa em meio a alguns arbustos na beira da estrada. Decidiu parar ali um pouco para se recompor e continuar a caminhada.
Uma diminuta pardal que havia feito seu ninho ali, se assusta tanto com a inesperada aparição, que se deixa cair entre as patas estiradas do enorme e magro cão, que até então dormia um sono pesado, alheio a tudo. Atordoado e com a pequena ave a poucos centímetros de sua bocarra, o cão diz "Dê-me um bom motivo para não devorá-la pois estou faminto!". A pardal timidamente ergue uma de suas asinhas e mostra ao cão o seu ninho com três filhotinhos pelados, cegos, frágeis e tão famintos quanto o cão.
O cão suspira e aproveita pra coçar atrás de suas orelhas. A mamãe pardal feliz por sua sorte, percebe imediatamente que aquele sim é um cão bondozo e sente pena de seu amigo pulguento de costelas protuberantes. "Muito bem!" diz a ave "me siga pela cidade e eu te recompensarei por ter poupado a mim e aos meus pequenos filhotes!"
Os dois seguem a trotar até a cidade e lá chegando a pardal orienta o cão para esperá-la em um beco próximo. Muito acostumada a carregar minhocas e muitos gravetos, a furtiva ave rouba-com destreza exemplar-uma comprida lingüiça do mostruário de um açougue e leva até o seu simpático companheiro. Depois de comer o maior pedaço de carne que já vira na vida, o cão se mostra um verdadeiro glutão e pede a sua amiguinha que por gentileza o conseguisse também um pouco de pão branco. Imediatamente a pardal voa e volta com uma bisnaga inteira.
Achando fácil a tarefa de alimentar o cão e tocada pela alegria com que o mesmo balançava seu rabinho fino, a pardal decide convidá-lo para morar entre os arbustos e ser seu vizinho. Assim, ele poderia afugentar as raposas e outros animais que quisessem devorar seus filhotes e em troca, ela lhe arranjaria sempre boa comida dispensada pelos humanos.
O cão arfa de felicidade já imaginando os futuros banquetes e antes de seguirem até os arbustos, servem-se da água de um grande coxo onde dois cavalos espantavam preguiçosamente as moscas sacolejando suas longas crinas pretas e embaraçadas.
No meio do caminho, o cão que parecia uma melancia enfeitada com quatro patinhas esqueléticas e um longo focinho, deixa-se cair no meio da estrada de terra fofa e pôe-se a cochilar com seu ar infantil. A pardal compreende que seu amigo está cheio demais para proseguir e se posiciona na estrada afim de vigiá-lo o sono.
Ao longe, uma carroça se aproxima e a pardal esvoaça sobre o carroceiro para alertá-lo. Indiferente o maldoso carroceiro atropela covardemente o cão que antes de sucumbir à lenta e dolorosa morte lança um languido olhar de adeus à sua diminuta amiga.
A pardal como sua primeira vingança, fura com bicadas violentas, os dois barris de vinho que eram carregados na carroça, deixando com que o líquido avermelhado manchasse a terra da estradinha. O carroceiro sente o cheiro de vinagre evaporado pelo sol e ao constatar a perda de sua carga diz: "Pobre e miserável que sou eu-perdi meses de trabalho no vinhedo" e a pardal responde "Não pobre e miserável o suficiente pois há de pagar ainda mais pela covardia que fizeste com o meu amigo".
Tomado por ódio, o homem tenta acertar a pardal com uma pedra, mas erra a pontaria e acaba por acertar a cabeça de um dos seus cavalos que cai morto. O homem se ajoelha junto ao cavalo morto e exclama "Pobre e miserável sou eu-acabei de matar um dos meus cavalos" e a pardal novamente responde que ele ainda há de sofrer mais por ter atropelado o cão.
O homem, sem a sua carga e sem o melhor de seus cavalos se vê obrigado à voltar para casa. A pardal voa furiosamente em volta do homem que tenta agarrá-la furioso e fingindo estar cansada, deixa-se pousar sobre a cabeça do outro cavalo. O carroceiro, a achando que a ave era incapaz de voar naquele momento, com um ar de esperteza arranca um estilingue do bolso e acaba matando o seu segundo cavalo. Ao ouvir mais uma vezo resmungo do homem, a pardal vocifera que ele há de pagar em sua casa pelo ato maldoso que cometera e se adianta rapidamente até a choupana onde ele morava.
Quando o homem chega em casa, encontra a mulher aos prantos, pois um bando de pardais e outras aves estavam devorando toda a comida que eles guardavam na dispensa e também o trigo que estava no ponto de ser ceifado. Eles então, sem comida ou dinheiro, lamentam por sua miséria e vêem a pardal surgir na janela e responder "Não miserável o bastante pois há de pagar com a própria vida, a vida que tiraste do meu amigo". O homem e a mulher tentam por muito tempo agarrar a pequenina pardal até que por fim o homem a segura firme entre as mãos e notando que a avezinha era esperta demais para se prender por muito tempo, ordena a sua mulher que agarre o machado enconstado junto a lareira.
A pardal começa a bicá-lo e a se controcer dentro de suas mãos e o homem, se vendo prestes a perdê-la, começa a gritar desesperadamente para a sua mulher-a não mais espertas das mulheres- que a matasse ali mesmo em suas mãos. A tola mulher, não menos enraivecida que o homem, desfere com toda a sua força um golpe de machado. Mas eis que a pardal escorrega das mãos do cruel carroceiro naquela exata hora e ele ao tentar agarrá-la novamente recebe fatalmente a machada em seu crânio.
Exausta, a pardal junta algum trigo da dourada plantação em seu biquinho e voa serenamente para os arbustos onde os seus filhotes a esperam a piar com seus bicos abertos.