quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Tartarugas Bebês.

Era virada de ano. Estava na praia com a minha família. Uma praia praticamente vazia senão pelas casinhas do condomínio fechado e umas esparças pessoas, a maioria de Minas.
Voltava de uma festa. Cantavam músicas, dançavam e os casais andavam de mãos dadas.
Eu, como costume, me sentia deslocada e alienígena. Sou muito diferente daquelas pessoas e mais ainda das que são "sangue do meu sangue". Não queria crescer. Andava sozinha pela trilha de mato cuidadosamente aparado, estava de sandália e as gotinhas do orvalho tocavam as laterais do meu pé. Não podia ver o mar, mas podia escutá-lo: à minha direita as casas do condomínio e o local da festa com as luzes acesas e as vozes que se distanciavam à cada passo novo, à minha esquerda algumas árvores e cactos e a limiar da areia, enorme pedaço de areia, uma porteirinha de madeira e o mar lá embaixo. Mas do que tudo da praia sinto saudade do cheiro do mar. E do céu. Um céu que é só estrelas e por vezes lua também.
Tenho muito medo do mar. Quando estou no mar me sinto prestes a me perder... ainda mais quando a água está quente e viva. Parece algum lugar que já estive. Estado embrionário. Deito na quebra suave das ondas com minha bochecha contra a areia e vou sentindo a água e a areia me sugarem. As vezes prendo a respiração e afundo o nariz na areia também.
Esses momentos de entrega absoluta, quase sono, quase sonho, me fazem sentir bem, minha mente se esvazia e vivencio a paz por algumas horas...uma paz consciente, diferente da do sono, que é o vazio. Também gosto do vazio.
O mato aquele dia era tão verde-escuro que era quase uma coisa só com a noite que o cobria. Escutei um roçar de passos atrás de mim e vi minha irmã, o marido dela e minha mãe. Eles estavam alegres e conversavam. Esboçei um sorriso apesar de não sorrir por dentro.
"O que é isso? É um besouro? É enorme!"-disse minha irmã. Quando nos aproximamos notamos vários...se arrastando pela grama. Ela os iluminou com a lanterna e pra minha surpresa eram tatarugas bebês. Desorientadas, pobrezinhas, com o barulho, o mato e todas as coisas não-naturais. Estavam morrendo, algumas estavam muito machucadas, faltavam-lhe olhinhos, haviam sido pisoteadas por gente e pelos poucos carros de quem foi para a cidade para ver os fogos de artifício. Meus parentes foram dormir. Peguei a lanterna emprestada.
Chamei algumas pessoas da festa. Elas me ajudaram. Colhi tartaruguinhas até não ver mais nenhuma mechendo sobre a grama. Fiz isso até amanhecer. Fiz isso até todos irem embora e ficarmos somente eu e elas. Eu quase chorava.
Devo ter colocado na água mais de cinquenta. Algumas nitidamente feridas e sem a mínima chance de nadar ou sobreviver. Na verdade, queria que elas pudessem ao menos se sentir no caminho. Sentir a areia, sentir a água em suas nadadeiras frágeis. Elas estavam fracas, por mais que impulsionassem seus corpinhos, a grama as empedia de chegar até a areia. Os cheiros se misturavam demais para elas entenderem onde estava o mar e seguirem sozinhas. Sabe-se lá por quantos minutos ou horas elas haviam lutado antes de eu as encontrar.
Na verdade, sabia que estatisticamente, e em condições normais, somente 3 das 200 tartaruguinhas chocadas conseguiriam chegar à vida adulta.
Não me importava. Só queria que elas pudessem tentar. Só queria que elas morressem como tartaruguinhas marinhas normais.
Mais tarde fui entender. Eu era cada uma delas. Colocá-las suavemente na água, ainda que elas já estivessem morrendo, me tirava um pouco do caminho desconhecido e me levava para meu lar. Ainda desconheço esse lar. Tenho muito medo de morrer na busca sem nunca conhecer o mar ou a areia. Amanhece e meu cadáver está ali largado, sujando a trilha, mal-cheiroso e pútrido no meio das pessoas que distantemente esboçam alguma pena ou algum nojo ou me julgam vítima das circunstâncias. Uma tartaruga-mãe não deveria chocar tão longe assim do mar. 

O que vivenciei foi um pequeno e assustador milagre.

2 comentários:

  1. Legal. Mas acho besteira ter medo de morrer antes de achar esse "lar"...porque a essência da vida é a busca em si.
    Encontrar o lar seria plenitude, perfeição.
    E a humanidade é muito desgraçada pra merecer isso. Todos nós morremos tentando.

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  2. Queria ter essa impressão positiva sobre a busca Paulo. Muito obrigada por comentar. Beijo!

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