domingo, 21 de fevereiro de 2010

É isto um homem?

Uma moça tinha perdido alguém muito importante e para se tratar colocava-se a cantar as notas peculiarmentes tristes de seu violão naquele dia. Ela é uma daquelas criaturas livres e etéreas que quando te tocam, com mais leve que seja o roçar de uma mão ou de um lábio, fazem correr por dentro um impulso elétrico. Seria bem capaz de ficar perdida para sempre em seus fios de cabelos, me mudar para Faerie e viver cantando e roubando as crianças dos humanos, ou ainda, viver a função mórbida de anunciar aos pobres moribundos que é chegada a derradeira hora.  
Ela cantava e tocava, todos nós, a sua volta, fingíamos que éramos o mesmo, ou que não éramos na verdade, indiferentes a sua dor. A simpatia é algo que dura apenas enquanto os olhos pousam na face infeliz, só virar o rosto pra voltar para a nossa auto-piedade que é mais forte que a própria verdade da vida.
A grama era mais fofa do que parecia e curiosamente nova para mim. Nem ao menos a tinha notado ao passar por aquele trecho tantas vezes. Eu era uma estranha naquele grupo, e não sei bem ao certo, que feitiço ou que feitio me fez ter ali presa. A cabeça levemente inclinada, as pernas com caimbra por ficarem dobradas. 
Acendi um cigarrilho especial. Só meu. Estivera guardando esse para algum momento atípico. Para não ter que dividí-lo, fui até um  bar próximo e comprei alguns outros de palha para os demais que entenderam perfeitamente meu recado.
Não me demoraria ali. Quando a cinza tocasse o filtro eu me despediria e continuaria o caminho até minha casa. O cigarro de certa maneira era também o meu relógio de areia. Um feitiço para quebrar outro.
Uma moça causou algazarra com um grupo de cruéis rapazotes. Eles tinham um som ligado alto(que nos obrigava a também cantar alto para apagá-lo) e ridicularizavam a maneira com que ela se vestia e portava. Logo percebi que ela era um zumbi. As roupas minúsculas e sujas, o cabelo desgrenhado, as pupilas dilatadas e brilhantes. Estava ali alguém a quem restava pouco de sua própria alma. 
Não sou melhor que ninguém por ser dona da minha sanidade. Não posso julgar ninguém além de mim. Afinal, quem define qual dor é maior. Dores são dores. Não posso ter compaixão do sofredor nato e não ter de quem é culpado de sua própria dor. Acho que entendo isso bem, uma vez que sou assassina de mim mesma.
Ela se pediu pra sentar conosco, e logo depois se pediu para sentar ao meu lado. Eu permiti. Ela então recostou sua cabeça desvaneicida rapidamente sobre meu ombro, gesto infantilizado para uma mulher que provelmente havia sido estrupada e surrada repetidamente e a quem não restava senão o corpo para se vender. Um corpo sem alma já não responde mais por si.
Tive um pouco de nojo. Se ela tivesse permanecido com sua cabeça sobre meu ombro eu teria logo antecipado minha partida e fugido dali...como foi um gesto tão rápido não reagi. Ela havia tido um abrupto lampejo sobre suas próprias condições e evitou mais uma humilhação se afastando de mim antes que eu mesma, obrigatoriamente,o fizesse.
Estava prestes a se estilhaçar... dos olhos dela saiam pequenas lágrimas, desciam oblíquas pela pele queimada de sol e empoeirada, lavando as maçãs de seu rosto a mediam que corriam. E aquilo sorria. Sorria! O sorriso insano do limiar da loucura plena. Queria poder abraça-la, dizer que tudo ficaria bem, fazer falsas promessas. Mas as injúrias que partem a alma são mais terríveis do que as que convalescem o corpo pois todas são tão fatais quanto um câncer. Qualquer doença desumaniza. O corpo apodrece a medida que a alma se afunda na obscuridão. O ser é transformado em todos os monstros relatados pelas Artes, a Criatura, o lobisomen, o morto-vivo e a temida bruxa, quando não o Minotauro, pobre filho das circunstâncias, exilado e condenado a ser um devorador de homens. 
Ou se tornam animais invisíveis.
"Me dê um trago do seu cigarro!"- clamou aquele lábio tremulante, que com esforço imensurável segurava um sorriso.
De qualquer maneira, estava além da minha capacidade natural fazer qualquer coisa além de vê-las. Me pergunto se exatamente isso, enxergá-las e não ajudá-las, fazia de mim um ser humano ainda mais desprezível e odiável do que os que simplesmente escolhem não enxergar os miseráveis.   
"Eu te dou o meu cigarro inteiro!" - mas eu sabia que não era essa a questão.
"Nãooo." começou a chorar, agora com soluços "eu quero só um trago!."
"Não posso."(Não queria dizer "não consigo")
"Por favor!! Não vai estragar sua saúde, eu prometo"
Ela só queria ser tocada. Só queria ser humana de novo. Eu também estava entrando em desespero. Me sentia completamente vil ao ter minha limitação escancarada assim dessa maneira: como a porta de um hospício ao receber mais uma leva de loucos.
"Por favor."
"Só um trago."
"Por favor.."
"Por fa....",cada vez mais fraca, e a cada segundo de silêncio aumentava-se a intensidade das lágrimas e mais se desfigurava aquela face.
"Não divido meu cigarro nem com os meus amigos! Pode perguntá-los". Foi o máximo que consegui fazer. Uma mentira. Uma meia-verdade. Ela os procurou com o olhar perdido, angustiada por uma resposta. Estavam todos horrorizados, como se subtamente estivesse ali o monstro pessoal de cada um deles. As faces empalidecidas, os olhos arregalados e a inércia da surrealidade da situação. Um deles, por fim, gaguejou que era verdade. E apontou com seu longo indicador de pianista os cigarros de palha espalhados pela grama.
Dei à ela a metade final do meu cigarro. Disse à todos que tinha que ir... e eles, pobres crianças assustadas se levantaram um por um -cruelmente, instintivamente buscando por proteção ou talvez apenas aliviados- eles me abraçaram(alguns eram desconhecidos). Ela também se levantou. Estava feito. Eu conseguiria afinal abraça-la, sendo deixada assim sem alternativa. Pensei que não seria tão ruim. Estava a apenas uns seis quarteirões da minha casa, e poderia ir direto para o chuveiro quando chegasse. Nenhuma doença infecto-contagiosa sobreviveria a bastante água e sabão, nem mesmo sarna. Minha pele estava sadia, sem nenhum corte e minhas roupas eram bem fechadas. 
Mas ela se conteve.
No canto entre uma banca de revistas fechadas, dançavam, com o brilho espectral da noite, alguns negros sacos de lixo. Sobre a calçada imunda escorria um lastro de restolho. Alguns folhetos de propaganda política voavam aqui e ali com marcas de pisoteamento. Uma sombra viva se projetava por trás da banca. Pensei ser um rato ou um cão vadio, mas era um homem.   

    

4 comentários:

  1. Acho que não é disso que é feito um homem, não desse absurdo.
    Mais de qualquer maneira todo homem é um conjunto inóspito de coisa irregulares, podemos até tentar, até maquiar uma nova expressão, mais a verdade é que tudo, exatamente tudo cai-se ao chão quando algo nós é de alguma forma escrupulosa. E agente fica assim cheio de quimeras na mente, tentando achar de alguma forma uma solução que seja no mínimo confortável para a situação, é assim que os nossos olhos correm e percorrem os canteiros a nossa volta, armados e cheios de veneno.

    ResponderExcluir
  2. CAMINHEI NESTE DOMINGO PELO SEU BLOG MUITO BOM TRABALHO E BLOG VENHA REVIRAR MEU BAÚ

    ResponderExcluir
  3. ”A simpatia é algo que dura apenas enquanto os olhos pousam na face infeliz”

    Muito bom texto, Mari. Geralmente não leio textos muito extensos no écran do micro, mas este seu me pegou e “a simpatia” durou muito mais que enquanto os olhos tentavam acompanhar as linhas. Você transmitiu excepcionalmente bem o asco da personagem ao contato humano e, através deste asco, abriu múltiplas possibilidades de viajar na personalidade daquela que se sentiu vil ao sentir escancarada a sua limitação.

    Parabéns!
    Ótima semana.
    Beijos

    ResponderExcluir