quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Picadeiro(Reescrito)

Acordou e seu coração estava em chamas. Pesava demais para o seu peito. Pesava como se uma fada dormisse sobre seu tórax esperando a manhã para roubar-lhe uma criança humana.
Ao invés de assar o pão-de-ontem com uma colher de margarina e passar o solitário café preto e forte de antes de ir para o escritório, olhou pela janela enegrecida de fuligem do apartamento.
O circo se estendia a poucos metros dali. A lona, um arco íris dentre os prédios. A alegria completamente alienígena daquelas cores em contraste com a cidade.
Fechou os olhos e se lembrou dos sons do picadeiro:
O rugido enorme do leão que fazia tremer por dentro e deixava suas pernas magricelas de menino bambas, a voz marcante do apresentador, as gargalhadas irônicas do palhaço.
Os palhaços não eram autênticamente felizes. Eles estavam entre ser bicho e ser gente, assim como as outras aberrações, a mulher barbada, a mais gorda do mundo, o homem lobo, a mulher gorila e até mesmo os desengonçados anões.
Gente de circo.
No escritório, ele também se confundia... Por vezes era o homem cálculos e relatórios. Tão ironicamente misturado com seu ofício que também sofria de cálculo, a dor pungente e chata nos rins.
Raramente perguntavam seu nome ou como havia sido seu dia, queriam é saber dos memorandos e papéis. Papéis.
Zé que é Palhaço Brigadeiro... Teodoro que teve um filho que não sabe o nome, e que põe no rosto desgastado, carregando consigo aquela lembrança daquele único amor, uma máscara tão sorridente que magicamente o torna outro: Palhaço Beringela.
Suspira. Desiste completamente do café. Puxa a gaveta da cozinha e tira a faca de corte.
Com ela rasga o peito e enfia a mão dentro e agora segura um coração palpitante como um bichinho recém-nascido, quente e pulsante frágil, frágil.
Segura com cuidado para não apertar muito.
O pijama fora transformado magicamente de um amarelo doente em um traje salpicado de vermelho, mais escuro no meio e mais claro à medida que se afastasse do lugar onde antes era seu peito fechado e onde agora se abria uma enorme boca.
Foi um pouco difícil abrir as portas usando uma mão só e andar até o circo também foi penoso: seu chinelo estava uma poça só.
O tempo todo ele tinha que conter a vontade de correr até o circo com um sorriso aberto e os olhos brilhantes, mostrando o que tinha em suas mãos. Isso seria uma excentricidade que arruinaria a suavidade do seu gesto.
Uma dona deixou cair as compras, mas ele não pode se abaixar para ajudá-la. Olhar acusador. Nem ao menos havia lhe notado as mãos ocupadas.
Ele era invisível como o habitual, mesmo em seus trajes novos. Por sua vez, as outras pessoas também eram invisíveis- aquele momento era somente dele. Assim sendo, se permitiu virar com desprezo o seu rosto e combinou consigo mesmo de não párar por mais ninguém.
A fila da bilheteria era pequena.
Ao chegar a sua vez foi se lembrar de que não havia trazido dinheiro.
Não precisou dizer nada, do outro lado da gradinha abriu-se um sorriso compalcente e lhe foi empurrado um ingresso: "Cuidado com isso que você carrega, hein e evite sujar o ingresso, precisamos reaproveitá-lo na próxima noite, não estamos ganhando muito, você sabe!".
Ele acenou acertivamente com a cabeça e mostrou os dentes em um esboço de sorriso meio adoentado, meio sem jeito. Sentou-se lá no fundo, mas mesmo assim se sentiu nú, pois na arquibancada, projetada para cinquenta espectadores, não se sentavam mais do que quinze.
Os tambores rufaram e ele pela primeira vez viu, com seus olhos, o pequeno coração (pequeno para um homem da sua idade, certamente deve ter murchado um pouco) bater mais forte, quase saltando das palmas de suas mãos.
Então, com um grito profundo, ele atirou seu coração às areias do circo. Ele caiu bem no meio do picadeiro, causando um pequeno levantar de poeira.


Para Paulo Paes. Inspirado por Poema Circense.

domingo, 16 de outubro de 2011

A Luz.

Estive em um jantar de gala ontem.  Sobre a mesa estendia-se um tecido impecavelmente alvo e os pratos de porcelana fina estavam dispostos sobre ela junto com a comida: batata, cogumelos e carne.

Desde do dia em que a conheci não consigo mais comer carne. O vermelho da peça mal passada brilhava e eu tinha que controlar minha ânsia de vômito. Já havia estado em muitos jantares como esse e me esbaldado desse vermelho. Ainda consigo sentir a textura viscosa e o sabor rançoso entre meus dentes, acariciando minha língua.

Sou um homem idoso agora, consigo me desculpar pela indelicadeza dizendo que meus dentes estão muito fracos para mastigar um bife e que tenho preferido as sopinhas. Os anfitriões se divertem e esboçam sorrisos simpáticos, por vezes me oferecendo um cereal qualquer.

Eles não são pessoas ruins. A maioria dos que conheci são apenas adultos mimados tentando sobreviver ao genocídio do planeta agindo como se sua rotina fosse a mesma de quando eram apenas crianças. Mas não é. Vivemos no subsolo agora e temos apenas um terço dos mantimentos que costumávamos ter. E não existem mais crianças. Somos estéreis desde o impacto da primeira bomba.

Alguns são parcialmente queimados, os cabelos ralos por causa da radiação. As mulheres mais ricas usam perucas feitas de pêlo de ratos. Sobraram poucos seres humanos e com exceção dos das fazenda de corte, somos doentes e senis. 

Não há muitas mulheres trabalhando nas minas mas a matrona das fazendas entregava um sanduíche para o marido quando a bomba caiu. Seus óvulos saudáveis manipulados in vitro geram bebês anencéfalos que são criados até a puberdade, cortados e vendidos. 

Por muito tempo imaginei que aquilo não faria mal nenhum, pois aqueles bebês seriam incapazes de sentir, portanto incapazes também de viver. No subsolo a criação de porcos, vacas ou outros animais de porte grande se torna inviável por causa dos poluentes. Os seres humanos in vitro gastam poucos recursos(são alimentados através de sondas). 

Quando ainda estávamos na superfície, salvei um dos donos das fazendas de corte e ele me devia um favor. Minha esposa morreu quando eu ainda era um rapaz de 20 anos e agora estou só. Ele me presenteou com uma mulher. Uma menininha. 

É desnecessário dizer que se tornou proibído deixar descendentes das fazendas de corte para repopularem o planeta.  Os poucos sobreviventes votaram em uma assembléia pela extinção da raça humana. Vimos muitos horrores que nossos avós jamais imaginariam existir um dia.

Minha pequena companheira se chama Luz. Ela vive em um quarto de um metro e meio e só convive comigo. É fisicamente perfeita mas apresenta desvios comportamentais devido ao encarceramento e ao isolamento da espécime humana do dia do seu nascimento até quando a recebi. 

Não deve ser a única. Ainda que a maioria dos homens tenham perdido suas ereções com a bomba, a perversão sexual continua inerente ao ser humano. Acredito que com dinheiro bastante para criar uma plantação de cogumelos ou tubérculos os aristocratas quase todos devem se dispor de favores sexuais dessas pobres garotinhas, afinal, suas mulheres padecem de ressecamento vaginal e mau-hálito. 

Imagino que alguns prefiram os garotinhos.

Minha Luz será criada para perpetuar a espécime humana caso a radiação não destrua seus ovários como fez com as outras mulheres. Os cientistas calculam que em 10 anos a radiação se dissipará, mas os sobreviventes talvez não alcancem essa longividade. Como disse, quase todos temos cancêr. Eu defeco sangue há cerca de um mês e na semana passada começei a sentir dores intestinais agudas. Espero, com o auxílio médico, sobreviver até Luz completar 15 anos.

A mantenho em um abrigo anti-radiação, a alimento com a ensosa ração regular, e deixo que ela desenhe, cante e brinque com suas bonecas. Leio para ela todos os dias. Explico que ela guarda a sementinha da raça humana. Ela entende apesar de ter conhecido as plantas somente nas gravuras de um livro. É fácil para ela, mais fácil do que para nós que conheçemos outa vida.

Implantei um mapa da saída das minas e instruções de como se inseminar em uma capsula subcutânea. Preciso agora conseguir o esperma de um exemplar de corte. Ouvi dizer que comprar exemplares vivos por um valor diferenciado, claro, anda em voga. Quem não gosta de carne fresca?



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Lady Gaga e o povo

E este foi o meu sonho: Lady Gaga, apesar de ter como véu um rio de repórteres e paparazzis, estava acidentalmente do meu lado. Os flashes disparavam incessavelmente e ela, altiva como um busto grego, sentiu-se entendiada o bastante para conversar.
Para mim era só mais um dia, mais uma conversa, enfim, apesar das roupas escandalosas e do ar célebre, a pessoa com quem falava era apenas uma desconhecida.
Ela me perguntou alguma coisa corriqueira que agora já não lembro. E depois ficamos em silêncio.
Um senhor idoso e mal-trapilho irrompeu da multidão, saltou o cerco dos seguranças e a abraçou. Ela fez um gesto para que o deixassem ali por mais alguns segundos. Ele declarou seu amor e depois foi-se embora para atrás do muro-multidão.
A diva popular virou sua cabeça para mim e teceu um comentário sussurrado sobre os ossos de seu ofício: "He smells awfully." e eu respondi: "Welcome to the third world, my darling!".

domingo, 4 de setembro de 2011

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tentativas de fuga durante um ataque zumbi.

   Quando os zumbis começaram a atacar a nossa área, estávamos em uma pesquisa de campo com alguns outros alunos, o professor de ciência, a professora de artes e a diretora da escola.
   Viemos para um rancho estudar Zoobotânica. Tudo aconteceu muito rápido, eu acho, porque até então, não havíamos tido notícia de zumbis espalhados por aí matando as pessoas. Devem ter surgido aqui pelo tempo que demoraram para chegar com os seus gemidos no portão da casa.
   A maioria dos alunos estavam fora com a diretora, que também é professora, coletando amostras de espécimes de diferentes filos. Iríamos montar um painel para apresentar aos outros alunos na segunda feira.
   Eu e minha melhor amiga ficamos com o professor de ciências e a professora de artes para a parte "interdisciplinar" da estadia. Preparávamos uma dinâmica sem graça que nem tivemos a chance de terminar.
   Escutamos os zumbis e corremos para o quarto que achamos mais seguro. A louca da professora de artes começou a correr em direção oposta aos gritos... provelmente se saiu bem, já que os zumbis são lentos. Mas nada garante que não tenha zumbis nas outras fazendas.
   Nesse momento estamos os três no alto das beliches...a porta é muito sólida, de madeira maciça e a fechamos com um trinco de ferro. Usamos duas camas para fazer uma barricada. O professor de ciências é um bebê adulto, mas com tanta massa corporal, conseguiu deslocar as camas com facilidade. Os zumbis não são coordenados ou inteligentes à ponto de usarem ferramentas pra desbloquear a porta... vimos isso pelo jeito trôpego e incoerente deles andarem em direção à casa...alguns nem se interessaram. Era como se não soubessem para onde ir quando estravam no meio do caminho.
   O professor ajeita os óculos em seu rostinho rechonchudo e enchuga as lágrimas com as costas das mãos. Está suado. Duas enormes rodelas de suor mancham a sua camisa de tamanho especial debaixo dos peitos. Ele parece um pequeno buda triste. Talvez ele entenda melhor a proporção das coisas do que nós.
   Minha amiga está com o rosto escondido em meu ombro. Aos poucos percebo que sou a única que não entrou em colapso. Estamos seguros por hora. Não tem janelas no quarto, só dois minúsculos basculantes para ventilação no alto da parede. Acho que o quarto foi feito assim or causa do frio à noite.
   Teremos que sair pela porta trancada, mas como? Estamos ferrados.
   Depois de seis horas esperando temos sede e fome. Ainda escutamos os zumbis gemendo do lado de fora...não são muitos. Talvez uns três. O professor disse que se tivesse uma arma ele poderia ao menos se suicidar. Realmente, correr não está dentre as possibilidades de fuga para ele.
   A ajuda não virá, o professor disse que teve uma idéia. Não pareceu a mais genial do mundo mas fez sentido: ele colocará a mão para fora do basculante e se deixará ser mordido. Apesar dos filmes mostrarem os zumbis com força sobre-humana ele acha que eles não conseguirão arrancar o braço dele. Eu concordo.     
   Então, esperaremos ele ficar inconsciente ou morto(claro, vai demorar um pouco para ele se transformar) e o usaremos como isca ou escudo. Enquanto os zumbis o atacam nós duas fugimos... e daí pra frente teremos que elaborar nossos próprios planos. Pobre professor! Mas qualquer coisa é melhor do que ser devorado vivo, não é mesmo... 
   O professor coloca a mão para fora. Esses minutos foram agonizantes, os zumbis demoraram mais de meia hora para perceber a mão dele do lado de fora do basculante, parecem ter se distraído da nossa presença.      
   De repente os gemidos de dentro da casa pararam e foram para o lado de fora. Minha amiga e eu empurramos a cama com toda a força enquanto o professor gritava. Estávamos apavoradas mas tínhamos que ser rápidas. Como ele preveu os zumbis não eram fortes o suficiente para arrancar seu braço, mas o conseguiram prender...e pelos gritos desesperados do professor eles o estavam devorando: cada um dos seus dedinhos rechonchudinhos, como se fossem espetinhos de carne e definitivamente não era uma cena que queríamos continuar assistindo.
   Saimos. Nenhum zumbi na casa. Eles estão todos entretidos com o tira-gosto e acho que são burros demais pra entrar na casa atrás do prato principal. Os gritos(ou o cheiro) atrairam outros. Podemos vê-los se aproximando pela estrada de terra. Espero que o professor desmaie.
   Por sorte achamos uma bicicleta casa do caseiro. Isso nos dará alguma velocidade extra. A minha amiga vai pedalando. A bicicleta é um pouco alta mas ela está se saindo bem. Não tenho o fenótipo de atleta, sempre fui mais cérebro. Decidimos pedalar até a pequena cidade, com sorte acharemos alguém em algum veículo mais rápido e fechado...a qualquer momento um zumbi pode saltar de dentro do mato sobre nós e estarmos mortas se isso acontecer. Ela pedala de pressa, não fala nada. A bicleta trepida muito. Com os braços em sua cintura eu procuro não apartá-la, ela respira pesadamente por causa do esforço aeróbico de carregar nos duas.
   Nenhum zumbi. Devem estar todos pra onde vamos.
   Mas esperamos encontrar força policial junto com os civis não-monstros sobreviventes.
  Uma descida. Escutamos alguns ruídos no mato. Parecem gritos. Os demais alunos? Prefiro não pensar sobre isso agora. Se soubéssemos dirigir poderíamos ter pego o carro da diretora(isso se ele estivesse aberto e com as chaves na ignição). Uma descida. As vacas pastam indiferentes à tudo. Só perceberão que algo aconteceu quando o bebedouro secar e ninguém vier lhes trazer ração e feno.
  Descemos da bicicleta. Estou praticamente carregando minha amiga ofegante agora. Ela está chorando. Acho que eu estou também.
   Escutamos algo, um cavalo?! Sim! Um cavalo. É o caseiro. Sua mão bruta e forte nos é estendida. Estamos salvas por um momento. Deixo minha amiga ir na cela enquanto eu sento no pêlo. Machuca um pouco. Mas acho que nós duas pesamos menos que um adulto. O caseiro disse que vai tentar ir até o posto policial da estrada que leva à cidade grande. Ele parece ter idéias melhores do que as do professor. Grande irônia. Deve ser a lida do trabalho braçal.(Apesar que o professor fez literalmente um trabalho braçal para nós salvar).
   Melhor não pensar nisso.
   O posto policial está vazio, eles devem estar na cidade(ou mortos, ou andando por aí devorando crianças). Encontramos dois cavalos e nenhum zumbi. O que esperávamos? Estamos na área rural. É mais fácil perseguir criminosos assim do que a pé, ou você acha que a polícia teria uma 4 por 4.
   O caseiro cela o cavalo para nós e nos ensina como montá-lo. Acho que foi a aula mais relâmpago que já tive. Mas gosto de animais. Não. Preciso voltar para casa. Meu cãozinho...meus pais.
    Não estamos longe da cidade. Já podemos escutar os gritos e os gemidos dos zumbis. O cavalo se recusa a se aproximar e talvez seja uma boa idéia. Alguns carros passam muito rápido por nós. Resolvemos sair da estrada. Eu vigio a frente e ela a retaguarda... nosso plano é sair cavalgando freneticamente à qualquer sinal de zumbi. Por que não nos ajudam??
   Escutamos um som ensurdecedor... o cavalo empina...algo corta o ar...o chão treme e uma explosão. Estão nos sacrificando. Bombas. Talvez seja a hora de desistir. Não quero ser comida viva. Não quero.
o cavalo.... com a explosão... poderíamos ter sido atropeladas...ele está correndo muito agora...descontrolado...parou. Rápido, desça. Muitos carros. Socorro! socorro!
   Um deles parou. Um casal assustado. Estão dirigindo muito rápido. Querem chegar ao porto. As bombas caem nas cidade. Vimos alguns zumbis perto da rodovia... o número deles está aumentando rápido. Se um deles entrar na rodovia certamente nos mataria à essa velocidade. Eu e minha amiga estamos abraçadas no banco de trás. Cai a noite. Estamos dirigindo à algumas horas. Continuamos vendo o clarão das bombas nas cidades distantes. 
   O homem disse que com mais duas horas estaremos no porto. Os zumbis provavelmente afundam por não terem ar no pulmão. O mar é muito grande, não deve atraí-los. E além disso... as bombas estão destruindo tudo. Espero que meus pais estejam bem. Espero conseguir encontrá-los denovo... espero que eles tenham levado o celular(apesar de duvidar conseguir chegar viva à alguma ilha que tenha telefones instalados).
  Estamos no porto. Nenhum zumbi por aqui. As pessoas estão enchendo os navios de comida e água potável. Vamos com elas. Essa é nossa única esperança.







sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A Maldição do Toque

O que faço não é aceitável. Sou um gari da carne morta. Quem toca cadáveres é sempre estigmatizado. Ainda que meu trabalho seja misericordioso. 
Gosto de observar o resultado. Faço eles parecerem dormir,  pararem de se decompor e soltar odores desagradáveis.  As pessoas têm muito nojo dos mortos. E dos doentes. E de apertar a minha mão.

Enquanto muitas sociedades lidam com a morte como parte da vida, nós a escondemos por sobre uma maquilagem. A mecanização nos afastou do que somos por baixo da pele e dos dedos que tocam a touchscreen. Somos todos carne. E a carne apodrece ao invés de enferrujar.

A natureza da carne morta é uma visão aterrorizante. O cheiro, os pés duros e esticados como dois peixes agônicos. O branco arroxeado. Os olhos nem sempre fechados. O rosto por vezes congelado em uma careta agônica. Não há dignidade em se morrer.

É bom devolver aos rijos um ar mais natural. Assim eles deixam de ser repugnantes e podem ser velados. As pessoas se despedem de um rosto e não de uma idéia. É necessário ver o fim sobre um véu atenuador.

Então, mais uma vez eu descubro a artéria, faço uma pequena incisão e dreno o sangue, enquanto ele é substituído por líquido embalsamador com corante. Massageio toda a extensão do corpo para que o líquido se espalhe e faça a pele passar de um tom azul à um rosado.

Sou o último pulsar dos mortos. Sou seu coração.




             

domingo, 31 de julho de 2011

Adulta presa em quarto de criança

Os dedos procuram um lugar quente embaixo da coberta.
Enquanto ela dorme, seus dedos brincam,
dedilham canções cândidas de prazer
em uma caverna úmida, macia de carne rosada.

Repentinamente ela acorda e quase grita
e chora baixinho como um filhotinho de gato.

É que a mãe dorme no quarto ao lado
e as bonecas e ursinhos de pelúcia

A olham com seus olhos de pepita preta escancarados.

domingo, 26 de junho de 2011

O Gambá e seu rabinho de cabo de guarda-chuva.

Toda pessoa comum está sujeita a acontecimentos extraordinários. Alguns dependem de uma certa sensibilidade, outros acontecem por si só. 
É comum se ver gatos, pássaros, cães e por vezes ratos coexistindo com os mendigos na sujeira das ruas. Gosto de observar as matilhas de cães que trotam na rua. Eles não tem preocupações ou doenças humanizadas como os nossos próprio cães. Eles saltitam, rolam pela grama, mordiscam uns aos outros e seus rabinhos(muitas vezes carcomidos por parasitas) estão sempre sendo brandidos freneticamente. Eles correm e migram e são felizes.
Por vezes sento em um banco em uma ilha  de uma lagoa urbanizada e não pareço estranha ou ameaçadora para esses cães de rua. Quando percebo eles já estão à coçar suas pulgas bem perto de mim. Consigo então notar detalhes de suas fisionomias e perceber as relações de liderança entre eles. Cães são organizados nesse ponto. Eles me parecem bem assim, não tenho vontade de "salvá-los", não esses que se adaptam bem à liberdade. Ao mundo extritamente canino.
Minha cadelinha foi adotada da rua. A Lucy é viciada em gente. O tempo todo que viveu nas ruas, não se uniu à uma matilha. Um dia, vi pela janela de onde estava, uma moça sentada e a Lucy tentando desesperadamente se aproximar dela, a moça dizendo "Xô, xô!" e balançando os braços como duas bandeirolas.
Enquanto escrevo, ela dorme no quintal. Parece contar os segundos para o próximo contato. Não a vejo se entreter como esses cãezinhos da ilha faziam. Ela está sempre me esperando. Depende de mim para passear, brincar, comer. Como disse, ela é viciada em gente, inclusive crianças.
Quando meu namorado chega, ela começa a dar pequenos choramingos, sei que é ele antes da campanhia tocar. Abro o portão e ela uiva de felicidade, pula  e brinca(agitadíssima) com ele por alguns minutos. Depois entramos e ela volta a esperar até a próxima visita. Mas devo salientar que ela escolhe seus favoritos. Se ela não conhece, late. Se conhece, fica calada. Se gosta muito, choraminga.
Os meus gatos gostam muito de mim. Mas gostam sem precisar tanto assim quanto a Lucy. Para eles é o suficiente estar no mesmo cômodo e ganhar comida e água fresca quando pedem. Eles brincam, caçam e brigam, sem nós. Gatos são assim. Eles parecem nos conceder um favor ao nos deixar acariciá-los ou ao fazem um charminho. É como se o gato soubesse da carência do ser humano. Como se o gato nos visse por dentro e nos apontasse imperfeições e necessidades desesperadas de afeto.
Me pergunto o que nos faz selecionar animais para merecerem ou não a nossa compaixão. Um cão sim, um rato não. Ratos são parasitas urbanos e transmitem doenças, assim como os pombos. No entanto, não vejo pombos serem esmagados com vassouras ou causarem gritos. Em mim, eles causam mais repulsa do que os roedores...e ganham pedaços de pão para depois defecarem sem pudor nos telhados e passeios.
Um dia precisei matar um rato. Ele foi trazido pra dentro de casa pelos gatos e corajosamente se encaixou em um buraco do tamanho do seu corpo, atacando com mordidas e unhadas os gatos que tentassem removê-lo dali. A faxineira, aos gritos apavorados, me mandou matá-lo. Não consegui. Achei que ele foi tão valente e queria tão desesperadamente continuar a viver. Em um primeiro momento começei a apertá-lo com a vassoura e ele chorou. Chorou. Um "quíiiii" forte, prolongado e sentido. Peguei outra vassoura, prendi ele entre as cerdas das duas e o soltei na rua. Ele parecia em tudo com os gatos e os cachorros, só era menor. Também tinha um focinho pretinho, bigodinhos e olhos de jabuticaba assustados.
Ratos não vivem em lugares limpos e sem comida, se produzimos a sujeira e o alimento, temos que conviver com eles.
Mas a coisa extraordinária que me aconteceu foi ver bem de perto um filhote de gambá. Ele estava se arrastando em jardim de folhas grandes e altas na faculdade. Nessa faculdade moram muitos gatos, e a princípio achei que fosse algum deles. O barulhinho continuou, continuou e ele finalmente apareceu: o focinho compridinho se contorcendo muito próximo ao meu pé. Eles não fedem. Eles soltam um cheiro desagradável como mecanismo de defesa quando se sentem em perigo. Curiosamente ele não se assustou comigo. Assim como aos cães de rua minha presença à ele não representava qualquer intimidação. O observei já que ele se mostrou. Era apenas um bebê. Bebê-gambá. E estava machucado. Arrastava as duas patinhas traseiras e seu rabinho. Disse a mim mesma que gambá é um "bicho do tempo". Minha mãe usa essa expressão pra falar dos gatos e sua habilidade de se curar sem a interferência do ser humano. 
Na verdade, o gambá sofre de uma mazela: não causa simpatia ao homem e por isso é morto. Em que esse bichinho nos prejudica? É perigoso ou peçonhento? Não. Se alimenta de criançinhas humanas? Não. Ainda assim são mortos à paulada e vêem seus filhotinhos serem igualmente assassinados caso tenham se aproximado demais das casas. Assisti isso muitas vezes quando criança no sítio dos meus avós.
O gambá é somente um marsupial inofensivo que alimenta de raízes, vermes, frutas, ovos, pequenas aves e inclusive de anfíbios e serpentes. Seus movimentos são lentos e sua visão é machucada pela luz forte dos carros e das lâmpadas porque ele só sai  a noite de seu esconderijo para conseguir comida.
Queria que mais humanos se permitissem olhar para o rabinho cabo de guarda-chuva do gambá. Eles veriam que ele poderia muito bem ser uma mistura de gato e cachorro que anda trôpego e cego quando é descoberto durante o dia. Não possui a elegância felina ou a expressão facial canina. É so mais um bichinho do mato que acontece na cidade também. 

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Não é saudável, B.

Não é saudável, B. Já não lembrava mais de você, digo, pensava em você eventualmente, mas as minúcias me fugiam. E ontem quando você esteva aqui, você elogiou a minha nova decoração do quarto. Você trouxe o seu minúsculo cãozinho preto(Dorothy?). E você me fez lembrar de como sempre foi o seu rosto.
Disse o que eu esperava: que nunca havia deixado de me amar, e cheirou a minha pele com a fúria de sempre e me buscou com a fúria de sempre e nós fizemos amor. Sentia saudade disso também.
Eu pude te contar várias coisas, nós fizemos coisinhas corriqueira juntas e por fim estávamos felizes.
Mas isso tudo aconteceu há muitos anos atrás, não é mesmo B.? E eu não espero que você haja de maneira diferente do que tem sido por todo esse tempo. Somos desconhecidas. Temos nossas vidas. E eu ouso dizer que ambas encontramos alegrias e realização com nossas outras pessoas. Especialmente você que não partiu.
Por isso digo que não é saudável. Não é somente isso. É mais ainda cruel ter sonhado com você assim. Agora que uso o mesmo corte de cabelo que você usava. E ouvir nesse sonho que você me ama é assustador. Quer dizer que na verdade essas palavras são minhas. São do meu incosciente trágico já não domado pela razão. Ainda amo você, depois de todos esses anos. E não farei nada a respeito disso.

terça-feira, 29 de março de 2011

Ocupada

De tanto gritar ante ao impenetrável muro da casa do futuro.
Instalou-se um algo oco no espaço de agora.
E os momentos meus passaram a ser entregues
às pessoas de outrora, outros temas, outros papos.

Não sinto mais sua falta nessas minhas horas, horas vagas
Vivência perigosa, você me perdeu um pouco.

sexta-feira, 25 de março de 2011

50 fatos sobre mim ou Muitos dos meus esqueletos no armário.

Estou gostando de conhecer melhor meus amigos do blogger via entrevistas e afins, então, decidi postar algumas coisas sobre mim...
1) Nesse exato momento o que tenho pensado é "mãe de menos falta, mãe demais sobra."
2) Tinha/tenho síndrome de Peter Pan diagnosticada. Percebi que minha terapia estava me levando à cura o dia que deixei de usar mochila e tênis o tempo todo e minha psicóloga comentou que até meu jeito de vestir já estava mudando.
3) Me sinto completamente castrada por meus irmãos e minha mãe apesar de amá-los muito, apesar de sabê-los tentando me amar de uma maneira melhor. Nem sempre conseguimos.
4) Já fiquei dois anos sem conversar com um dos meus irmãos, não fui ao casamento dele e estou à quase ou mais de um ano sem conversar com minha irmã.
5) Não odeio meu pai, mas o acho uma das pessoas mais horríveis que já conheci intimamente.
6) Tenho medo de me tornar tão permissiva quanto minha mãe e arruino todos os meus relacionamentos sendo muito mandona ou implacável demais.
7) Tenho muitas gasturas e nojos e gosto de tudo desse mundo dividido: uma bucha pra copos, outra pra pratos. Uma pasta dental só minha, copos, talheres, tudo separado, antigamente, até camas, mas tenho cogitado dormir na mesma cama que o Fábio se nos casarmos.
8) Odeio isopor dentro da geladeira. Vasilhas de plástico hermeticamente fechadas me fazem sentir bem.
9) Detesto cozinhar. Como comida fria pra não ter que usar o fogão.
10) Tenho mais nojo das pessoas do que dos bichos.
11) Gosto mais dos meus bichos do que das pessoas.
12) Apesar de gostar mais dos bichos TAMBÉM gosto muito das pessoas, mas odeio o que o ser humano faz com os outros animais.
13) Bigodinhos de gato e patinhas fofinhas estão entre as coisas que gosto mais.
14) Cesar Millan me inspira. Quero ser uma líder de matilha com energia calma e assertiva.
15) Sou cruel porque sofro.
16) Me sinto terrivelmente sozinha porque as pessoas não gostam das mesmas coisas do que eu.
17) Se não fosse a Lidiane eu estaria morta. Ela é minha "alma gêmea de amiga". Ela me conhece.
18) Desde que voltei pra casa dos meus pais não consigo fazer sexo de maneira decente. Me sinto terrivelmente culpada e errada e uma parte de mim jamais se entrega inteiramente. Outra morre.
19) Sou uma pessíma namorada por causa da depressão.
20) Minha arma já foi o ataque verbal.
21) Já experimentei muitos romances desnecessários e auto-degradantes para me punir.
22) Já fui feminista ao extremo.
23) Até hoje odeio os homens e tenho que me esforçar diariamente para não ver o Fábio como um inimigo.
24) Amo muito e preciso desesperadamente do meu namorado e isso me incomoda muito.
25) Não consegui tirar carteira e sofri um gravíssimo trauma emocional no dia que foi aprovada no exame de legislação. Esse trauma não tinha necessariamente a ver com o processo de tirar carteira mas tornou tudo um pesadelo.
26) Tenho alguns esqueletos que não vou conseguir tirar do armário.
27) Acho algumas carnes gostosas mas me sinto mal por cada grama de carne que como, me sinto mal por não conseguir ficar sem carne e leite industrializados.
28) Queria comer produtos de origem animal somente se eles viessem de animais que viveram felizes e morreram dignamente.
29) Sou obcecada com tiros na cabeça desde a infância. Quando estou em uma crise muito aguda  a única coisa que me acalma é imaginar a pessão do cano frio de metal e a pulsão do gatilho.
30) Já acreditei em Deus de uma maneira ritualística.
31) Já fiz uma promessa à São Francisco e ela foi atendida e paga.
32) Gosto de olhar a noite e de escutar a chuva.
33) Tenho medo de subir em bancos, escadas e até de sentar em algumas cadeira.
34) Uma cadeira do refeitório já quebrou comigo por causa do meu peso.
35) Detesto preconceitos mas tenho muitos.
36) Não tenho vontade de emagrecer.
37) Quero cobrir metade do meu corpo com tatuagens.
38) Quero um travesseiro de melissas.
39) A Kiwi é a minha maior paixão. Mas ela é menos minha do que a Lucy.
40) Kiwi viveria bem sem mim. Ela é forte e independente. Por isso me sinto comovida quando a chamo e ela desce do telhado pra me atender. Já chorei por causa disso.
41) A Lucy tem esse nome por causa do King Diamond (Lucy, do Graveyard) e por causa de "Lucy in the sky with diamonds" Lucy e eu. Lucy e Mari Diamond. E por causa da Lucy do "Como se Fosse a Primeira Vez".
42)Escrevi uma versão para a minha Lucy da musiquinha que Henry(que é um médico veterinário) canta para a Lucy do filme: "Forgetfull Lucy". Porque a minha Lucy também teve amnésia.
43) Canto "soft Kitty/warm Kitty/lil'ball of fur/happy kitty/sleepy kitty/purr purr purr" para a minha Kiwi.
44) Canto para as duas uma versão da musiquinha que a mãe do Dumbo cantava para ele(Filinho Meu) para a Lucy e a Kiwi "Sem você/meu neném/sem você/sou ninguém/você é tudo pra mim/não há bebê tão lindo assim" mas mudo neném e bebê por Kiwiwi e Lulu. E quando a minha sobrinha Lídia era pequenininha cantava isso pra ela também.
45)A Letícia e a Lídia são minhas sobrinhas e meus maiores amores do mundo inteiro.
46)Ainda não consigo gostar de muitas das coisas do mundo adulto.
47)Tenho dificuldade para dormir cedo, mas adoro ter muitas horas de sono.
48)Adoro jogar Resident Evil.
49)Adoro os filmes do Hayao Miasaki, o Tão Longe, Tão Perto do Wim Wenders e muuuuuiots filmes de zumbi.
50)O livro que mais gostei de ler na vida foi o Fumaça e Espelhos do Neil Gaiman, mas falo que prefiro o Oscar Wilde porque só conheço uma única pessoa que já leu esse meu livro favorito. O Retrato de Dorian Gray é meu segundo livro favorito.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Fire and Ice by Robert Frost

Some say the world will end in fire,

Some say in ice.

From what I've tasted of desire

I hold with those who favor fire.

But if it had to perish twice,

I think I know enough of hate

To say that for destruction ice

Is also great

And would suffice.



Robert Frost

domingo, 13 de março de 2011

A senhora misteriosa e a falta dos meus avós.

Passo em frente a um casarão todos os dias. Ele tem o muro baixo-coberto por hera- e deixa entreaver nuances da casa com cortina em todas as suas janelas.
Sempre gostei de muros com hera. Elas significam o que diz o som do próprio nome: perseverança e paciência de vê-las crescendo, década após década, até um dia enfim terem aquele aspecto fofo e denso. O concreto totalmente escondido pelas raízes e musgos.
Nesse casarão tem um jardim. Na verdade, muitas plantas espalhadas de maneira caótica aqui e ali. E uma delas é um arbusto que fugiu para fora da casa e que dá flores pequititas.
Um dia vi a senhora da casa cuidando daquele arbusto. Ela estava com os olhos cheios d'água e arrancava com ódio algumas ramas quebradas. Eu a dei bom dia e ela me parou. Disse que as pessoas não respeitam mais as outras, que estragaram o seu arbusto. E eu a contei que o nosso jardim, que não possuía grade, havia sido completamente roubado da noite para o dia. Só encontramos os buracos onde ficavam as plantas.
Ela me contou muitas coisas naquele dia. E em um rompante sôfrego me disse que um de seus filhos havia morrido dois anos atrás. E me disse que não conseguia superar isso, que não conseguia mais rezar ou se sentir feliz.
Fiquei atônita pois não passava de uma desconhecida. O que eu poderia dizer? Ensaiei algumas palavras. Ela chorava, seu corpinho curvado balançava, e não pude deixar de notar que ela havia sido uma mulher muito bonita um dia. Suas roupas de jardinagem mostravam bom gosto e seu cabelo ainda que branco era muito volumoso, e caia em ondas sob seus ombros, os olhos muito azuis e profundos e os traços finos. Talvez seus pais tenham sido estrangeiros. 
Eu raramente a vejo. Ela é como um fantasma. Em quatro anos só a encontrei duas vezes, no dia desse incidente e uma vez depois dele. Meu coração fica triste quando passo lá de frente. Temo pensar que ela desistiu da jardinagem. A jardinagem é uma atividade que salva a alma das pessoas idosas. Principalmente das mulheres que eram matriarcas de uma família grande. Elas tinham muitas obrigações, cuidavam da casa, dos filhos, trabalhavam...e depois, fracas, por causa de tanto se esforçar, se vêem privadas de tudo. Cultivar e fazer crescer as plantas é uma obrigação leve que as faz sentirem vivas.
A empregada da casa tem feito isso. E eu imagino a senhora tão sozinha ao olhar alguns retratos ou sentar hipnotizada em frente à televisão.
Não consigo saber se eu fui apenas uma ouvinte ou se aquilo foi um pedido de socorro. Adoro histórias! Sentaria feliz com ela e tomaria uma xícara de chá a escutando contar coisas sobre seus pais ou sua vida de moçinha. Tive curiosidade. Quase pesquisei sobre ela. Quase a chamei quando passava pelo portão ao longo desses anos. Mas como disse anteriormente, nunca fomos nada senão desconhecidas...e tenho medo de incomodá-la.
Talvez seja carência minha que não tenho mais avó desde muito novinha. É tão sombrio admitir isso, mas sou egoísta e falha. A única avó que conheci não tinha mais lucidez ou era muito sizuda. Ainda assim, eu gostava de a observar trançando os longos cabelos ondulados que eram tão prateados e depois os amarrando em um coque. 
Outro dia recebi uma resposta. Uma resposta que dizia que eu fiz bem em não procurá-la. Quando passei de frente o muro de era(já não mais olhava por sobre ele) escutei um único latido profundo e meus olhos encontraram os olhos nublados de uma cadelinha muito muito velha. Pequena, peluda, cor de caramelo, e com dois laçinhos vermelhos por sobre as longas orelhas felpudas. O pêlo de sua carinha já completamente branco. Lembrei da minha Lucy e daquela mesma manhã. Estávamos em um banco de ardósia. Eu sentada, fazia carinho em sua barriguinha branca e observava o banco embaçar e desembaçar com a sua respiração. O foçinho pretinho e as patinhas esticadas.
Ah! Então a senhora nunca esteve sozinha!
          

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O Machado do Homem de Lata

        A lua jazia tão meticulosamente partida no céu que parecia que alguém o tivesse feito com um machado afiado. E ao girar um pouco a minha taça de vinho, notei que o America bradava: "Oz never did give nothin' to the Tin Man, that he didn't, didn't already have."(Oz nunca deu nada ao Homem de Lata, que ele já não tivesse). Será que o Homem de Lata partiu a lua ao invés de partir a lenha?!
        Carla veio de dentro da casa e abraçou minhas costas embrenhando seus braços com os meus. Lembro-me como se fosse ontem: Ela parecia melancólica e sugeriu que levássemos o Jonathan. Então ela me beija a bochecha e caí sobre o acento. Pousa a cabeça meio de lado e olha pra algum lugar que não existia na varada e depois volta o olhar pra mim, se desenclina da cadeira e começa a falar freneticamente. Suas mãos agitando em frente ao corpo. Fala sobre o irmão caçula o tempo todo. 
          Eu era tão apaixonado pela Carla que ela poderia me pedir para que levássemos um idoso obeso e com artrite que eu aceitaria prontamente. Jonathan definitivamente não me daria problema. Um bom rapaz, pensei. Seria um excitante passeio de família. Outra coisa que pensei é que o Jonathan tinha um ótimo condicionamento físico por causa da academia em que trabalhava. Acho que a Carla pensou nisso também.
         Dali a dois meses embarcávamos rumo ao Nepal, mais de oito mil metros na primeira escalada. Ammapurna, uma montanha perigosa devido à queda de degelos. Há quem saliente que essa montanha era mais perigosa do que o Pico Everest, sua falta de oxigênio e também suas temperaturas extremas. Mas depois de Ammapurna poderíamos fazer o trek até o lar do legendário guro hindu Padmasamba, a pirâmide de gelo Dhauligiri e ainda exploraríamos Machhupuchhare, considerada uma das montanhas mais lindas do mundo.
         Nossa expedição contava com mais dois ou três locais que serviam como guias até a face da montanha e outros três alpinistas que eram alemães, eu acho. Todos experientes, menos Jonathan. Acho que esta era a segunda ou terceira montanha dele.
         Em determinado momento da nossa última escalada, eu ia na frente, por ser o mais experiente, Carla logo depois e Jonathan por último. Pensamos nessa configuração porque em caso de algum escorregão, o corpo de Carla faria menos pressão na corda do que o de Jonathan. Mas Carla se distraiu e deixou a corda que unia os dois se desgastar contra a rocha e Jonathan se viu preso somente à corda de segurança. Ele olhava para mim com dois olhos enormes e ingênuos quando o pino da corda de segurança começou a soltar. A pressão do meu sangue comprimia meus ouvidos e eu o sentia quente e em jatos shhhhh shhhhh, minha cabeça meio zonza. Não queria ser o herói, mas se eu conseguisse manter a calma talvez salvaria à todos nós... continuei escalando... o barulho seco das cordas cedendo atrás de mim.
           Não escutava muito além de minha própria cabeça e a voz de Jonathan gritando "Me ajuda, me ajuda, Meu Deus, me ajuda cara", Carla  estava em um silêncio sepucral. Eu tentava desesperadamente martelar um segundo pino para baixar a corda. Em um determinado ponto minhas mãos começaram a sangrar sem que eu ao menos notasse. Foi quando escutei Jonathan gritar "Você me matou sua puta!", saí do meu transe e vi Carla cortar a corda de Jonathan. Segundos depois da pancada ôca do corpo dele com o chão, ela chama meu nome e me pergunta: "Se não fizesse isso íamos nós três cair, não é?". A voz dela me soou tão infantilizada e alienígena que eu me limitei a acenar positivamente com a cabeça.
            Decidimos descer. O fizemos em silêncio. Escutava Carla fungar o tempo todo. Só olhei para ela uma única vez no trajeto inteiro. Era uma atitude perigosa não olhar para baixo, para ela, mas achava que ia enlouquecer se continuasse a vendo com o rosto congelado e desfigurado pelo inchaço enquanto as lágrimas desciam e desciam as maças de suas bochechas.
           No inquérito policial concordamos em dizer que Jonathan havia se sacrificado para nos salvar. O que não deixava de ser verdade. Foi tudo tão triste, tão fúnebre, que não houveram maiores investigações. Acho que pensei que eu me sacrificaria por qualquer um dos dois, mas não soube dizer se isso de fato aconteceria se fosse eu quem estivesse no final da corda.
           A família inteira me culpava. Sei disso por causa dos olhares que me davam no enterro. Carla e eu tentamos nos falar mais uma vez depois disso, talvez uns três ou quatro meses depois. Não tocamos no assunto mas ele pareceu mais latente do que qualquer outra coisa. Como um dente podre em uma boca perfeita. Não a culpei por ter se afastado de mim.
Eu, por outro lado, preferi passar alguns anos fora do país. Abandonei o hiking ou qualquer atividade similar. Apenas passeava aqui e ali, com a comodidade do meu escritório ser meu laptop ou meu palm. E mesmo em um lugar ermo em Bangkok se consegue uma boa conexão wireless.
           Quase nunca me lembro do incidente ou de Carla ou das montanhas... raramente sou perguntado sobre minhas escaladas porque as pessoas que me conhecem agora mal sabem desse antigo hobby e se eventualmente descobrem acham por bem me preservar de falar dele.
Só lamento quando escuto America tocar em alguma rádio... ou quando Dorothy e Toto saltitam sobre os tijolinhos dourados das minhas lembranças ocultas. 

    

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Casualidades.

As casualidades do dia me fizeram atrasar. Cansaço, trabalhos e estudos acadêmicos e horários de ônibus. Quando cheguei na faculdade não esperava vê-la. Não naquele dia. Tinha uma prova e faltavam dez minutos para a aula. 
Ela veio correndo ao meu encontro e saltou nos meus braços como uma criança bem novinha se lançaria aos braços de um pai que chega de viagem. Eu a agarrei e ela tombou a cabeça. O sorriso de caninos ligeiramente incisivos e o nariz arrebitadinho mais lindo e suave do mundo inteiro. Suas orelinhas élficas estavam avermelhadas e ela estava muito bêbada. Não encontrava seus óculos, nem seu celular. Ajudei-a a encontrá-los estendidos sobre a grama fofa do campus e os guardei em minha bolsa.
A voz enebriada e doce me contava que havia me esperado desde três horas da tarde, que me amava, que bebeu a tarde toda com nossos amigos e me confessou que estava com vergonha de estar bêbada. Ela em muitos aspectos parecia um pequeno anjinho etéreo e perfeito.
Tive que abandoná-la no sofá do diretório acadêmico. Cheguei dez minutos atrasada para a prova. Estava desesperada por deixá-la sozinha, mas aquela prova valia 30% dos pontos daquela matéria.
Nunca deixei que ela soubesse, mas quando saí desconsolada da sala e a enconrei, ela dormia com a boquinha desenhada ligeiramente aberta. Roncava um pouquinho. Uma das pernas estava esticada sobre o sofá de dois lugares e a outra desfalecida fora dele. Sua saia longa de brim(uma das minhas favoritas) havia caído de maneira cruel deixando as pessoas entreaverem uma calcinha de algodão e as bordinhas de um absorvente. 
Talvez tudo o que vivemos até aquele dia não me permitisse perceber o quanto ela precisava de mim. Eu nunca tive certeza de estar tão apaixonada e mais tarde de amar tanto quanto a amava. Eu também precisava dela. Mas aquele dia ela precisava sôfregamente de mim e saber que eu não sabia o que fazer ou como fazer fez meus órgãos entrarem em pura agonia e escorrerem dos meus olhos em forma de lágrimas. 
Lavei meu rosto e a acordei tenramente... me desculpei muito por a ter deixado sozinha e a levei até a casa dos avós. A rua era perigosa demais, mesmo para nós duas. Eu a deixei em casa e voltei sozinha para a república.
Nesse dia soube que nunca estaria preparada para aquele tipo de amor, tão profundo, tão desesperado.
Se eu fechar meus olhos agora ainda sou capaz de lembrar como era tê-la em meus braços. A pequena pressão que seus ossinhos faziam em minha pele, e seus braços reuposados sobre os meus.
Nunca soube cuidar de uma coisa tão delicada quanto as pequenas borboletinhas lilás e suas asinhas de papel. E até hoje isso parte o meu coração.   

domingo, 9 de janeiro de 2011

O Mar.

Piscinas são cadáveres com uma mortalha transparente. Água morta. Água desperdiçada. Pré-esgoto. E cheiram à cloro. O cloro deixa meu cabelo esverdeado. Detesto piscinas.
Fiquei três anos sem ver o mar. Com excessão de um riacho que visitei, fiquei todo esse tempo sem nadar. Tolero os lagos e as lagoas. Gosto de rios e riachos. Eventualmente crescem árvores frutíferas em suas margens e vemos os peixinhos nadarem entre nossos dedos. Pequenas piabinhas e bagres escondidos nas beiradas de barro.Água gelada. Muitos insetos.  
Mas gosto mesmo é do mar. O mar é o rei de todas as águas. Me lembrando que todas as coisas tem princípio, meio e fim. E ele é o fim de todos os rios. Misterioso e infinito.
Quando se olha pra água, ela parece turva e poderosa. Caminhamos para a boca de um gigante assassino e vivo. Gigante tenro. Sabemos da existência de lulas de doze metros, das orcas e dos tubarões e plâncton e corais e algas marinhas, as perucas gelatinosas das sereias... mas vemos somente água. O mar é um deserto explodindo em vida. É tentador. Nadar no mar é uma experiência única. É a aceitação do esgoto e de toda a morte que o homem traz. Quem entra na água do mar, ainda que não saiba é humilde por um momento... e divide com os animais e seres marinhos a mesma dor que causa. O mesmo sol que queima demasiadamente. A mesma náusea das luzes artificiais.
Quando vou a praia, vou me encontrar sozinha com o mar. Me sento na areia e deixo o meu pé onde as ondas se desmancham. E contemplo.
O mar deixa de ser tímido quando se acostuma com alguém. E a impressão que tenho depois de muitos minutos é que sou eu quem controlo as ondas. "Venham brincar comigo, mas se amansem primeiro". E as ondas que molhavam os dedões do pé, por vezes brincam de vir fortes e molharem meus braços e meu corpo inteiro. E a areia se mostra tão fofa que poderia até ser uma cama. Vejo um tatuí nadar apressado. Um siri se desviar de uma garrafa de plástico vazia. Uma conchinha se deitar longe de casa, na areia seca.  Vejo cardumes de peixe saltar sobre as ondas. E aprendo onde se escondem as estrelas do mar e os tião-eremita. Pareço vinte anos mais jovem quando estou na beira do mar. Volto a ter seis. Uma menininha de maiô verde vendo o mar pela primeira vez. Pular ondinhas e castelinhos de areia.    

É como reencontrar um velho amigo. Um amigo que é um Deus.