A lua jazia tão meticulosamente partida no céu que parecia que alguém o tivesse feito com um machado afiado. E ao girar um pouco a minha taça de vinho, notei que o America bradava: "Oz never did give nothin' to the Tin Man, that he didn't, didn't already have."(Oz nunca deu nada ao Homem de Lata, que ele já não tivesse). Será que o Homem de Lata partiu a lua ao invés de partir a lenha?!
Carla veio de dentro da casa e abraçou minhas costas embrenhando seus braços com os meus. Lembro-me como se fosse ontem: Ela parecia melancólica e sugeriu que levássemos o Jonathan. Então ela me beija a bochecha e caí sobre o acento. Pousa a cabeça meio de lado e olha pra algum lugar que não existia na varada e depois volta o olhar pra mim, se desenclina da cadeira e começa a falar freneticamente. Suas mãos agitando em frente ao corpo. Fala sobre o irmão caçula o tempo todo.
Eu era tão apaixonado pela Carla que ela poderia me pedir para que levássemos um idoso obeso e com artrite que eu aceitaria prontamente. Jonathan definitivamente não me daria problema. Um bom rapaz, pensei. Seria um excitante passeio de família. Outra coisa que pensei é que o Jonathan tinha um ótimo condicionamento físico por causa da academia em que trabalhava. Acho que a Carla pensou nisso também.
Dali a dois meses embarcávamos rumo ao Nepal, mais de oito mil metros na primeira escalada. Ammapurna, uma montanha perigosa devido à queda de degelos. Há quem saliente que essa montanha era mais perigosa do que o Pico Everest, sua falta de oxigênio e também suas temperaturas extremas. Mas depois de Ammapurna poderíamos fazer o trek até o lar do legendário guro hindu Padmasamba, a pirâmide de gelo Dhauligiri e ainda exploraríamos Machhupuchhare, considerada uma das montanhas mais lindas do mundo.
Nossa expedição contava com mais dois ou três locais que serviam como guias até a face da montanha e outros três alpinistas que eram alemães, eu acho. Todos experientes, menos Jonathan. Acho que esta era a segunda ou terceira montanha dele.
Em determinado momento da nossa última escalada, eu ia na frente, por ser o mais experiente, Carla logo depois e Jonathan por último. Pensamos nessa configuração porque em caso de algum escorregão, o corpo de Carla faria menos pressão na corda do que o de Jonathan. Mas Carla se distraiu e deixou a corda que unia os dois se desgastar contra a rocha e Jonathan se viu preso somente à corda de segurança. Ele olhava para mim com dois olhos enormes e ingênuos quando o pino da corda de segurança começou a soltar. A pressão do meu sangue comprimia meus ouvidos e eu o sentia quente e em jatos shhhhh shhhhh, minha cabeça meio zonza. Não queria ser o herói, mas se eu conseguisse manter a calma talvez salvaria à todos nós... continuei escalando... o barulho seco das cordas cedendo atrás de mim.
Não escutava muito além de minha própria cabeça e a voz de Jonathan gritando "Me ajuda, me ajuda, Meu Deus, me ajuda cara", Carla estava em um silêncio sepucral. Eu tentava desesperadamente martelar um segundo pino para baixar a corda. Em um determinado ponto minhas mãos começaram a sangrar sem que eu ao menos notasse. Foi quando escutei Jonathan gritar "Você me matou sua puta!", saí do meu transe e vi Carla cortar a corda de Jonathan. Segundos depois da pancada ôca do corpo dele com o chão, ela chama meu nome e me pergunta: "Se não fizesse isso íamos nós três cair, não é?". A voz dela me soou tão infantilizada e alienígena que eu me limitei a acenar positivamente com a cabeça.
Não escutava muito além de minha própria cabeça e a voz de Jonathan gritando "Me ajuda, me ajuda, Meu Deus, me ajuda cara", Carla estava em um silêncio sepucral. Eu tentava desesperadamente martelar um segundo pino para baixar a corda. Em um determinado ponto minhas mãos começaram a sangrar sem que eu ao menos notasse. Foi quando escutei Jonathan gritar "Você me matou sua puta!", saí do meu transe e vi Carla cortar a corda de Jonathan. Segundos depois da pancada ôca do corpo dele com o chão, ela chama meu nome e me pergunta: "Se não fizesse isso íamos nós três cair, não é?". A voz dela me soou tão infantilizada e alienígena que eu me limitei a acenar positivamente com a cabeça.
Decidimos descer. O fizemos em silêncio. Escutava Carla fungar o tempo todo. Só olhei para ela uma única vez no trajeto inteiro. Era uma atitude perigosa não olhar para baixo, para ela, mas achava que ia enlouquecer se continuasse a vendo com o rosto congelado e desfigurado pelo inchaço enquanto as lágrimas desciam e desciam as maças de suas bochechas.
No inquérito policial concordamos em dizer que Jonathan havia se sacrificado para nos salvar. O que não deixava de ser verdade. Foi tudo tão triste, tão fúnebre, que não houveram maiores investigações. Acho que pensei que eu me sacrificaria por qualquer um dos dois, mas não soube dizer se isso de fato aconteceria se fosse eu quem estivesse no final da corda.
A família inteira me culpava. Sei disso por causa dos olhares que me davam no enterro. Carla e eu tentamos nos falar mais uma vez depois disso, talvez uns três ou quatro meses depois. Não tocamos no assunto mas ele pareceu mais latente do que qualquer outra coisa. Como um dente podre em uma boca perfeita. Não a culpei por ter se afastado de mim.
Eu, por outro lado, preferi passar alguns anos fora do país. Abandonei o hiking ou qualquer atividade similar. Apenas passeava aqui e ali, com a comodidade do meu escritório ser meu laptop ou meu palm. E mesmo em um lugar ermo em Bangkok se consegue uma boa conexão wireless.
Quase nunca me lembro do incidente ou de Carla ou das montanhas... raramente sou perguntado sobre minhas escaladas porque as pessoas que me conhecem agora mal sabem desse antigo hobby e se eventualmente descobrem acham por bem me preservar de falar dele.
Só lamento quando escuto America tocar em alguma rádio... ou quando Dorothy e Toto saltitam sobre os tijolinhos dourados das minhas lembranças ocultas.