sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Cansaço.

Paralíticos. Um momento em que todas as palavras e ações se repetem nauseadamente. Qualquer coisa é enfadonha e ordinária. O lumiar da lua não passa de um reles lampião. O cansaço é um bebê nati-morto. O corpinho desfalecido cisma em tombar dos braços, embalde sua mãe o agarre e lhe ofereça a teta seca. É quando as palavras se juntam com mediocridade e a mente usa artifícios falhos para se mostrar em pleno funcionamento. Se engana. Os espelhos são todos falsos. E um espelho falso nada mais é do que uma tela pintada por um leigo sem talento. Por mais que se trabalhe os entalhes da moldura, as pinceladas são débeis e a imagem final distorcida e clownesca.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

É isto um homem?

Uma moça tinha perdido alguém muito importante e para se tratar colocava-se a cantar as notas peculiarmentes tristes de seu violão naquele dia. Ela é uma daquelas criaturas livres e etéreas que quando te tocam, com mais leve que seja o roçar de uma mão ou de um lábio, fazem correr por dentro um impulso elétrico. Seria bem capaz de ficar perdida para sempre em seus fios de cabelos, me mudar para Faerie e viver cantando e roubando as crianças dos humanos, ou ainda, viver a função mórbida de anunciar aos pobres moribundos que é chegada a derradeira hora.  
Ela cantava e tocava, todos nós, a sua volta, fingíamos que éramos o mesmo, ou que não éramos na verdade, indiferentes a sua dor. A simpatia é algo que dura apenas enquanto os olhos pousam na face infeliz, só virar o rosto pra voltar para a nossa auto-piedade que é mais forte que a própria verdade da vida.
A grama era mais fofa do que parecia e curiosamente nova para mim. Nem ao menos a tinha notado ao passar por aquele trecho tantas vezes. Eu era uma estranha naquele grupo, e não sei bem ao certo, que feitiço ou que feitio me fez ter ali presa. A cabeça levemente inclinada, as pernas com caimbra por ficarem dobradas. 
Acendi um cigarrilho especial. Só meu. Estivera guardando esse para algum momento atípico. Para não ter que dividí-lo, fui até um  bar próximo e comprei alguns outros de palha para os demais que entenderam perfeitamente meu recado.
Não me demoraria ali. Quando a cinza tocasse o filtro eu me despediria e continuaria o caminho até minha casa. O cigarro de certa maneira era também o meu relógio de areia. Um feitiço para quebrar outro.
Uma moça causou algazarra com um grupo de cruéis rapazotes. Eles tinham um som ligado alto(que nos obrigava a também cantar alto para apagá-lo) e ridicularizavam a maneira com que ela se vestia e portava. Logo percebi que ela era um zumbi. As roupas minúsculas e sujas, o cabelo desgrenhado, as pupilas dilatadas e brilhantes. Estava ali alguém a quem restava pouco de sua própria alma. 
Não sou melhor que ninguém por ser dona da minha sanidade. Não posso julgar ninguém além de mim. Afinal, quem define qual dor é maior. Dores são dores. Não posso ter compaixão do sofredor nato e não ter de quem é culpado de sua própria dor. Acho que entendo isso bem, uma vez que sou assassina de mim mesma.
Ela se pediu pra sentar conosco, e logo depois se pediu para sentar ao meu lado. Eu permiti. Ela então recostou sua cabeça desvaneicida rapidamente sobre meu ombro, gesto infantilizado para uma mulher que provelmente havia sido estrupada e surrada repetidamente e a quem não restava senão o corpo para se vender. Um corpo sem alma já não responde mais por si.
Tive um pouco de nojo. Se ela tivesse permanecido com sua cabeça sobre meu ombro eu teria logo antecipado minha partida e fugido dali...como foi um gesto tão rápido não reagi. Ela havia tido um abrupto lampejo sobre suas próprias condições e evitou mais uma humilhação se afastando de mim antes que eu mesma, obrigatoriamente,o fizesse.
Estava prestes a se estilhaçar... dos olhos dela saiam pequenas lágrimas, desciam oblíquas pela pele queimada de sol e empoeirada, lavando as maçãs de seu rosto a mediam que corriam. E aquilo sorria. Sorria! O sorriso insano do limiar da loucura plena. Queria poder abraça-la, dizer que tudo ficaria bem, fazer falsas promessas. Mas as injúrias que partem a alma são mais terríveis do que as que convalescem o corpo pois todas são tão fatais quanto um câncer. Qualquer doença desumaniza. O corpo apodrece a medida que a alma se afunda na obscuridão. O ser é transformado em todos os monstros relatados pelas Artes, a Criatura, o lobisomen, o morto-vivo e a temida bruxa, quando não o Minotauro, pobre filho das circunstâncias, exilado e condenado a ser um devorador de homens. 
Ou se tornam animais invisíveis.
"Me dê um trago do seu cigarro!"- clamou aquele lábio tremulante, que com esforço imensurável segurava um sorriso.
De qualquer maneira, estava além da minha capacidade natural fazer qualquer coisa além de vê-las. Me pergunto se exatamente isso, enxergá-las e não ajudá-las, fazia de mim um ser humano ainda mais desprezível e odiável do que os que simplesmente escolhem não enxergar os miseráveis.   
"Eu te dou o meu cigarro inteiro!" - mas eu sabia que não era essa a questão.
"Nãooo." começou a chorar, agora com soluços "eu quero só um trago!."
"Não posso."(Não queria dizer "não consigo")
"Por favor!! Não vai estragar sua saúde, eu prometo"
Ela só queria ser tocada. Só queria ser humana de novo. Eu também estava entrando em desespero. Me sentia completamente vil ao ter minha limitação escancarada assim dessa maneira: como a porta de um hospício ao receber mais uma leva de loucos.
"Por favor."
"Só um trago."
"Por favor.."
"Por fa....",cada vez mais fraca, e a cada segundo de silêncio aumentava-se a intensidade das lágrimas e mais se desfigurava aquela face.
"Não divido meu cigarro nem com os meus amigos! Pode perguntá-los". Foi o máximo que consegui fazer. Uma mentira. Uma meia-verdade. Ela os procurou com o olhar perdido, angustiada por uma resposta. Estavam todos horrorizados, como se subtamente estivesse ali o monstro pessoal de cada um deles. As faces empalidecidas, os olhos arregalados e a inércia da surrealidade da situação. Um deles, por fim, gaguejou que era verdade. E apontou com seu longo indicador de pianista os cigarros de palha espalhados pela grama.
Dei à ela a metade final do meu cigarro. Disse à todos que tinha que ir... e eles, pobres crianças assustadas se levantaram um por um -cruelmente, instintivamente buscando por proteção ou talvez apenas aliviados- eles me abraçaram(alguns eram desconhecidos). Ela também se levantou. Estava feito. Eu conseguiria afinal abraça-la, sendo deixada assim sem alternativa. Pensei que não seria tão ruim. Estava a apenas uns seis quarteirões da minha casa, e poderia ir direto para o chuveiro quando chegasse. Nenhuma doença infecto-contagiosa sobreviveria a bastante água e sabão, nem mesmo sarna. Minha pele estava sadia, sem nenhum corte e minhas roupas eram bem fechadas. 
Mas ela se conteve.
No canto entre uma banca de revistas fechadas, dançavam, com o brilho espectral da noite, alguns negros sacos de lixo. Sobre a calçada imunda escorria um lastro de restolho. Alguns folhetos de propaganda política voavam aqui e ali com marcas de pisoteamento. Uma sombra viva se projetava por trás da banca. Pensei ser um rato ou um cão vadio, mas era um homem.   

    

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Carnaval em Mariana

Carreguei meu corpo cansado até lá. A cidade parece uma casinha de boneca construída com o suor negro. Fé e escravidão. Exageros barrocos.
Em lugares assim não é difícil se sentir alienígena. Os turistas se destoavam dos demais. O apetite por fotos do sacro e do profano tão interligados... mas não seria isso o Carnaval?!
Meu tênis feito para cidades planas e asfaltadas me castigava, pedra por pedra "ai ui", dançar era difícil mas não deixei de fazê-lo.
Duas crianças pobres pediram para encostar nas minhas tatuagens, não acreditavam que eram de verdade. Suas mãozinhas sujas alisaram minha pele com a delicadeza de quem toca pela primeira vez uma porcelana chinesa. Era como se elas pudessem me quebrar. Dei picolé para elas e a moçinha(mais moderna que o garotinho) se despediu de mim dizendo "Tchau amiga".
Em Ouro Preto e no resto do Brasil, as pessoas se preocupam em se embebedar e devorarem umas as outras. Acho que esse é o Carnaval dos tempos pagãos. Festa da carne. 
O Carnaval de Mariana sempre me surpreende. É mais do que celebrar o corpo, é celebrar de fato, o sangue a correr pelas veias de nosso espírito. Sem tradição as coisas novas morrem, disse Freddie uma vez. Pessoas. Na concentração da escola de samba, uma mãe puxa a capa de sua filha semi-nua e diz "Já que é pra mostrar, mostra tudo!" e me reencontro com elas no desfile. A filha segue na frente com o seu corpão, e a mãe, também pelada, ostenta um enorme sorriso orgulhoso. 
As mulheres que vi nas escolas eram de verdade. Celulite, barriguinhas e estrias. A peculiaridade de cada uma dessas curvas me fez sentir muito bem. É muito mais bonito assim do que o Carnaval das mulheres de plástico(a) que a gente vê na tevê. A gente se sente mais real e feminina. Só acho atraente a mulher que de fato existe.
E quando irrompe no desfile as passistas semi-nuas acompanhadas do delírio da platéia masculina, meus olhos encontram curvas ainda mais sinuosas. Muito acima do peso. Grandes deusas da fertilidade de fio dental. Os seios fartos e as barrigas se abraçando. Senti tanto orgulho delas! É tão emocionante ver as pessoas se amando a ponto de dividir com os outros a sua própria nudez. Para a maioria das pessoas seria uma visão bizarra, mas tenho certeza que elas, as musas, se sentiram idolatradas por cada um de nós que as amamos e desejamos.
Quando o Zé Pereira da Chácara enche as ruas com seus muitos bonecos gigantescos me sinto em uma terra estranha de gigantes deformados. Fico tomada por um sentimento infantil... medo e fixação. Os meus olhos ficam vidrados naqueles seres estranhos de taquara, minhas pernas se paralisam e eu quero fugir mas quero ficar. É um sentimento de terror que por fim se dissipa-não me esmagaram, afinal.
Os bonecos do Catin são diferentes, eles são todos movimento, a expressão congelada parece mudar a cada nuance e me espanto pensando que na verdade são eles que nos assistem e não o contrário. Enquanto eles dançam bolero, tango e samba, a Banda Navegante se explode em som. O sol frita meus miolos, mas eu continuo ali, dançando com cada um dos bonecos e até esqueço que minha pele se derrete.
No último dia, fui no Circo Volante ver uma apresentação da Samba no Pé-de-moleque. A Frida e suas sombrancelhas marcantes, fantasia curiosa, segurava em suas mãos um violino totalmente artesanal. Palhaços de perna de pau. Palhaços cuspindo fogo... e enquanto isso música! Íamos dançando e brincando de ciranda. Todos desconhecidos, de mãos dadas como crianças, girando, girando no meio da rua. Saudando os palhaços, os oratórios e o sertão. Cantando em unissono que o axé é chato. Voltamos todos no tempo: crianças, idosos, muitos jovens e agora tinhamos todos a mesma idade. Brincando juntos de Carnaval.
Depois, terminado o cortejo, uma dama pega o microfone e com sua voz de sereia canta as marchinhas de quando era moça. Os olhos cheios de vida. Senti a falta dessa época que nem vivi.
Em frente às muitas Igrejas, pendiam os mastros decorados. A cidade florescia papel reciclado, o céu muito azul, repleto de borboletas de garrafa pet. E no chão, as pessoas se lembravam de pedir desculpa se eventualmente se trombassem. Casas de quinhentos anos com carros de modelos novíssimos estacionados à frente. Na rua de pedrinhas um moço passa vendendo algodão doce colorido. Agora, a saudade.