sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Marianices

A Catedral
              
Alphonsus de Guimaraens

Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"






Quando cheguei, encontrei tudo arrumado, esperando por mim. Encontrei o amor e a compreensão que desejava encontrar mas me senti um pouco incômoda. Como se eu ocupasse espaço demais. Então eu quis chorar. Mas aguentei. E foi bom. E será bom. Tentarei ser útil para fazer valer o meu enorme corpo, e o meu cheiro, e os meus hábitos, porque me sinto como se eu fosse um bebê gigante e temporão que mudasse a dinâmica dessa família. Um pouco de verdade, um pouco de exagero.

Mas esse tempo, esse tempo de silêncio, de contenção, é o que preciso para libertar todo o meu amor que sinto por eles. Para começar minha vida adulta perto da minha "irmãe". E que eu consiga isso. Já estou conseguindo sorrisos e gentilezas de pessoas desconhecidas, como se a cidade que estivesse vestindo esses rostos para dizer que eu pertenço aqui.

No entanto minha verdadeira casa é o Fábio. E tudo depende dele. De nós. Já sabia isso quando escrevi Driving Home. E queria que fosse aqui, nessa cidade.


As ruelas e as casas tem um cheiro úmido e familiar: terra, musgo e pedra. É como se agora eu morasse em um jardim. Gosto de andar bem devagar. O céu azul minha enorme sombrinha e por vezes me vejo surpreendida por praças, flores e pássaros. 


Ao passar em frente ao presídio local, bem no meio da cidade, ouvi os presos rezando em cântico. Era uma música emocionada, profunda e muito triste. Olhei pra cima e vi uma igreja. E notei que em quase os pontos da cidade as torres das Igrejas se erguem aos céus. Somos velados por elas. A intransponível pedra de Pedro. Ashes to ashes, dust to dust. 


Por fim, chego ao meu destino. O coveiro, negro e forte, estava sentado junto ao muro, assim, como faria um corvo. Estava quente e eu estava suada e vermelha. Ele parecia indiferente ao sol ou estava sob uma sombra que eu não via. "Oi! Está aberto?"- eu disse, e ele me respondeu com uma voz muito amigável que sim! Então eu perguntei: "O Alphonsus ainda está aí?" Ele riu e disse "Por enquanto está!".


Um homem idoso e mal trapilho entra logo atrás de mim. Senti um pouco de medo. Medo do homem e do coveiro. Os mortos não me incomodaram. Alguns túmulos estavam desarrumados, um grande Jesus escurecido pelas chuvas chorava fezes de pombos. E lá estava o Alphonsus. A inscrição dizia "A minha alma é uma cruz enterrada ao céu."


Fotografo a lápide com um sorriso irônico  "Pobre Alphonsus, pobre alphonsus!".









 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Lucy e seu problema de amnésia.

     Ontem depois de muita chuva, foi o segundo dia de estio. A grama e os musgos foram pintados de verde e o chão finalmente se livrou dos pequenos rios e lagoas de poça.
     Levei a Lucy até o ponto do nosso primeiro encontro. Era uma caminhada bem longa. Passei muito protetor solar e bebemos água antes de depois da caminhada.A Lucy gosta de deitar sua barriguinha branca na água para se refrescar. Ela se parece mais um crocodilo ou um dragão chinês do que um cachorrinho as vezes.
    Me lembrei de quando eu a via lá embaixo pela janela do segundo andar. Ela ficava um tempinho esperando lá na rua e depois sumia no meio do mato ou andando por aí atrás de comida. Em outra janela desse mesmo andar eu via flores roxas, hoje vejo as paredes nua de um prédio em construção.
    Um dia tinha uma dona sentada lá na bancadinha do jardim. E de onde eu estava eu vi a Lucy, que ainda não tinha um nome dado por mim, tentando se aproximar, pedindo carinho. A dona a tocava como se ela fosse um animal muito nojento e como se pedisse algo impossível. Aquilo partiu meu coração.
    Já faz mais de um ano que tenho ela aqui comigo. Ela parece nunca ter sido de outra pessoa. Se a levo a algum lugar ela espera a minha permissão para entrar. E se tento ir de um lugar a outro sem ela, chora como se eu a estivesse abandonando e simplesmente não permite que isso aconteça. Se escuta a minha chave girar no portão e sem ela junto de mim, ela grita como se estivesse sendo machucada.
    Esse é o segundo bichinho completamente apaixonado por humanos que eu encontro. Não consigo aceitar que eles foram descartados por alguém, tanto amor que eles têm. Prefiro imaginar que eles ficaram perdidos e que seus donos originais jamais os encontraram. O primeiro foi um gatinho bebê preto e branco. Queria ficar onde tivesse gente, nunca havia conhecido um gato assim, que me olhasse nos olhos e implorasse por chamego sem nunca ter me visto antes.
     Já tinha quatro gatos na época e eles queriam matá-lo. As poucas horas que ele ficou aqui foi um tempo em que foi tolerado pelos demais. Então, enquanto ia trabalhar, rezei: "Valha-me São Francisco! Me ajude a achar um dono para esse gatinho, por favor!" e não é que imediatamente após o pedido eu encontrei! 
    Pedi que o chamassem de Francisco dada a proeza do Santo. E assim ele virou "Chiquinho". Saiu daqui abraçado e beijado pela nova dona que nem se importava com as perebinhas em seu pêlo sujo. Se um dia ele foi chamado de José, de Flufi ou de Gato parece não mais saber.
     Lucy  também tem amnésia. Não sabemos quase nada do seu passado. E aos poucos ela própria vai se esquecendo do que sabia...medo de jornal ou vassoura, medo, medo. O olhar de tristeza foi substituído por uma cara de pura sapequice. Ela é bem feliz. Nós somos felizes. Ela agora é o começo da minha família. Eu e meu noivo somos os novos ancestrais e a Lucy é a nossa companheira e responsabilidade. Nossa menina-lobo-Falcon-criatura do Hayao Miyazaki.
    Caminhamos as duas juntas por horas a fio. Na volta estávamos tão cansadas que ela havia párado de cheirar as coisas do caminho. Eu não sentia a guia em minhas mãos, era como se ela não existisse. Não olhava para a Lucy e ela não olhava para mim. Andávamos exaustas em linha reta. Lado a lado. Sabia que ela estava ao meu lado porque escutava a sua respiração arfante. A rua era toda nossa. E meu coração era todo dela.