terça-feira, 23 de agosto de 2011

Tentativas de fuga durante um ataque zumbi.

   Quando os zumbis começaram a atacar a nossa área, estávamos em uma pesquisa de campo com alguns outros alunos, o professor de ciência, a professora de artes e a diretora da escola.
   Viemos para um rancho estudar Zoobotânica. Tudo aconteceu muito rápido, eu acho, porque até então, não havíamos tido notícia de zumbis espalhados por aí matando as pessoas. Devem ter surgido aqui pelo tempo que demoraram para chegar com os seus gemidos no portão da casa.
   A maioria dos alunos estavam fora com a diretora, que também é professora, coletando amostras de espécimes de diferentes filos. Iríamos montar um painel para apresentar aos outros alunos na segunda feira.
   Eu e minha melhor amiga ficamos com o professor de ciências e a professora de artes para a parte "interdisciplinar" da estadia. Preparávamos uma dinâmica sem graça que nem tivemos a chance de terminar.
   Escutamos os zumbis e corremos para o quarto que achamos mais seguro. A louca da professora de artes começou a correr em direção oposta aos gritos... provelmente se saiu bem, já que os zumbis são lentos. Mas nada garante que não tenha zumbis nas outras fazendas.
   Nesse momento estamos os três no alto das beliches...a porta é muito sólida, de madeira maciça e a fechamos com um trinco de ferro. Usamos duas camas para fazer uma barricada. O professor de ciências é um bebê adulto, mas com tanta massa corporal, conseguiu deslocar as camas com facilidade. Os zumbis não são coordenados ou inteligentes à ponto de usarem ferramentas pra desbloquear a porta... vimos isso pelo jeito trôpego e incoerente deles andarem em direção à casa...alguns nem se interessaram. Era como se não soubessem para onde ir quando estravam no meio do caminho.
   O professor ajeita os óculos em seu rostinho rechonchudo e enchuga as lágrimas com as costas das mãos. Está suado. Duas enormes rodelas de suor mancham a sua camisa de tamanho especial debaixo dos peitos. Ele parece um pequeno buda triste. Talvez ele entenda melhor a proporção das coisas do que nós.
   Minha amiga está com o rosto escondido em meu ombro. Aos poucos percebo que sou a única que não entrou em colapso. Estamos seguros por hora. Não tem janelas no quarto, só dois minúsculos basculantes para ventilação no alto da parede. Acho que o quarto foi feito assim or causa do frio à noite.
   Teremos que sair pela porta trancada, mas como? Estamos ferrados.
   Depois de seis horas esperando temos sede e fome. Ainda escutamos os zumbis gemendo do lado de fora...não são muitos. Talvez uns três. O professor disse que se tivesse uma arma ele poderia ao menos se suicidar. Realmente, correr não está dentre as possibilidades de fuga para ele.
   A ajuda não virá, o professor disse que teve uma idéia. Não pareceu a mais genial do mundo mas fez sentido: ele colocará a mão para fora do basculante e se deixará ser mordido. Apesar dos filmes mostrarem os zumbis com força sobre-humana ele acha que eles não conseguirão arrancar o braço dele. Eu concordo.     
   Então, esperaremos ele ficar inconsciente ou morto(claro, vai demorar um pouco para ele se transformar) e o usaremos como isca ou escudo. Enquanto os zumbis o atacam nós duas fugimos... e daí pra frente teremos que elaborar nossos próprios planos. Pobre professor! Mas qualquer coisa é melhor do que ser devorado vivo, não é mesmo... 
   O professor coloca a mão para fora. Esses minutos foram agonizantes, os zumbis demoraram mais de meia hora para perceber a mão dele do lado de fora do basculante, parecem ter se distraído da nossa presença.      
   De repente os gemidos de dentro da casa pararam e foram para o lado de fora. Minha amiga e eu empurramos a cama com toda a força enquanto o professor gritava. Estávamos apavoradas mas tínhamos que ser rápidas. Como ele preveu os zumbis não eram fortes o suficiente para arrancar seu braço, mas o conseguiram prender...e pelos gritos desesperados do professor eles o estavam devorando: cada um dos seus dedinhos rechonchudinhos, como se fossem espetinhos de carne e definitivamente não era uma cena que queríamos continuar assistindo.
   Saimos. Nenhum zumbi na casa. Eles estão todos entretidos com o tira-gosto e acho que são burros demais pra entrar na casa atrás do prato principal. Os gritos(ou o cheiro) atrairam outros. Podemos vê-los se aproximando pela estrada de terra. Espero que o professor desmaie.
   Por sorte achamos uma bicicleta casa do caseiro. Isso nos dará alguma velocidade extra. A minha amiga vai pedalando. A bicicleta é um pouco alta mas ela está se saindo bem. Não tenho o fenótipo de atleta, sempre fui mais cérebro. Decidimos pedalar até a pequena cidade, com sorte acharemos alguém em algum veículo mais rápido e fechado...a qualquer momento um zumbi pode saltar de dentro do mato sobre nós e estarmos mortas se isso acontecer. Ela pedala de pressa, não fala nada. A bicleta trepida muito. Com os braços em sua cintura eu procuro não apartá-la, ela respira pesadamente por causa do esforço aeróbico de carregar nos duas.
   Nenhum zumbi. Devem estar todos pra onde vamos.
   Mas esperamos encontrar força policial junto com os civis não-monstros sobreviventes.
  Uma descida. Escutamos alguns ruídos no mato. Parecem gritos. Os demais alunos? Prefiro não pensar sobre isso agora. Se soubéssemos dirigir poderíamos ter pego o carro da diretora(isso se ele estivesse aberto e com as chaves na ignição). Uma descida. As vacas pastam indiferentes à tudo. Só perceberão que algo aconteceu quando o bebedouro secar e ninguém vier lhes trazer ração e feno.
  Descemos da bicicleta. Estou praticamente carregando minha amiga ofegante agora. Ela está chorando. Acho que eu estou também.
   Escutamos algo, um cavalo?! Sim! Um cavalo. É o caseiro. Sua mão bruta e forte nos é estendida. Estamos salvas por um momento. Deixo minha amiga ir na cela enquanto eu sento no pêlo. Machuca um pouco. Mas acho que nós duas pesamos menos que um adulto. O caseiro disse que vai tentar ir até o posto policial da estrada que leva à cidade grande. Ele parece ter idéias melhores do que as do professor. Grande irônia. Deve ser a lida do trabalho braçal.(Apesar que o professor fez literalmente um trabalho braçal para nós salvar).
   Melhor não pensar nisso.
   O posto policial está vazio, eles devem estar na cidade(ou mortos, ou andando por aí devorando crianças). Encontramos dois cavalos e nenhum zumbi. O que esperávamos? Estamos na área rural. É mais fácil perseguir criminosos assim do que a pé, ou você acha que a polícia teria uma 4 por 4.
   O caseiro cela o cavalo para nós e nos ensina como montá-lo. Acho que foi a aula mais relâmpago que já tive. Mas gosto de animais. Não. Preciso voltar para casa. Meu cãozinho...meus pais.
    Não estamos longe da cidade. Já podemos escutar os gritos e os gemidos dos zumbis. O cavalo se recusa a se aproximar e talvez seja uma boa idéia. Alguns carros passam muito rápido por nós. Resolvemos sair da estrada. Eu vigio a frente e ela a retaguarda... nosso plano é sair cavalgando freneticamente à qualquer sinal de zumbi. Por que não nos ajudam??
   Escutamos um som ensurdecedor... o cavalo empina...algo corta o ar...o chão treme e uma explosão. Estão nos sacrificando. Bombas. Talvez seja a hora de desistir. Não quero ser comida viva. Não quero.
o cavalo.... com a explosão... poderíamos ter sido atropeladas...ele está correndo muito agora...descontrolado...parou. Rápido, desça. Muitos carros. Socorro! socorro!
   Um deles parou. Um casal assustado. Estão dirigindo muito rápido. Querem chegar ao porto. As bombas caem nas cidade. Vimos alguns zumbis perto da rodovia... o número deles está aumentando rápido. Se um deles entrar na rodovia certamente nos mataria à essa velocidade. Eu e minha amiga estamos abraçadas no banco de trás. Cai a noite. Estamos dirigindo à algumas horas. Continuamos vendo o clarão das bombas nas cidades distantes. 
   O homem disse que com mais duas horas estaremos no porto. Os zumbis provavelmente afundam por não terem ar no pulmão. O mar é muito grande, não deve atraí-los. E além disso... as bombas estão destruindo tudo. Espero que meus pais estejam bem. Espero conseguir encontrá-los denovo... espero que eles tenham levado o celular(apesar de duvidar conseguir chegar viva à alguma ilha que tenha telefones instalados).
  Estamos no porto. Nenhum zumbi por aqui. As pessoas estão enchendo os navios de comida e água potável. Vamos com elas. Essa é nossa única esperança.







sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A Maldição do Toque

O que faço não é aceitável. Sou um gari da carne morta. Quem toca cadáveres é sempre estigmatizado. Ainda que meu trabalho seja misericordioso. 
Gosto de observar o resultado. Faço eles parecerem dormir,  pararem de se decompor e soltar odores desagradáveis.  As pessoas têm muito nojo dos mortos. E dos doentes. E de apertar a minha mão.

Enquanto muitas sociedades lidam com a morte como parte da vida, nós a escondemos por sobre uma maquilagem. A mecanização nos afastou do que somos por baixo da pele e dos dedos que tocam a touchscreen. Somos todos carne. E a carne apodrece ao invés de enferrujar.

A natureza da carne morta é uma visão aterrorizante. O cheiro, os pés duros e esticados como dois peixes agônicos. O branco arroxeado. Os olhos nem sempre fechados. O rosto por vezes congelado em uma careta agônica. Não há dignidade em se morrer.

É bom devolver aos rijos um ar mais natural. Assim eles deixam de ser repugnantes e podem ser velados. As pessoas se despedem de um rosto e não de uma idéia. É necessário ver o fim sobre um véu atenuador.

Então, mais uma vez eu descubro a artéria, faço uma pequena incisão e dreno o sangue, enquanto ele é substituído por líquido embalsamador com corante. Massageio toda a extensão do corpo para que o líquido se espalhe e faça a pele passar de um tom azul à um rosado.

Sou o último pulsar dos mortos. Sou seu coração.