quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Picadeiro(Reescrito)

Acordou e seu coração estava em chamas. Pesava demais para o seu peito. Pesava como se uma fada dormisse sobre seu tórax esperando a manhã para roubar-lhe uma criança humana.
Ao invés de assar o pão-de-ontem com uma colher de margarina e passar o solitário café preto e forte de antes de ir para o escritório, olhou pela janela enegrecida de fuligem do apartamento.
O circo se estendia a poucos metros dali. A lona, um arco íris dentre os prédios. A alegria completamente alienígena daquelas cores em contraste com a cidade.
Fechou os olhos e se lembrou dos sons do picadeiro:
O rugido enorme do leão que fazia tremer por dentro e deixava suas pernas magricelas de menino bambas, a voz marcante do apresentador, as gargalhadas irônicas do palhaço.
Os palhaços não eram autênticamente felizes. Eles estavam entre ser bicho e ser gente, assim como as outras aberrações, a mulher barbada, a mais gorda do mundo, o homem lobo, a mulher gorila e até mesmo os desengonçados anões.
Gente de circo.
No escritório, ele também se confundia... Por vezes era o homem cálculos e relatórios. Tão ironicamente misturado com seu ofício que também sofria de cálculo, a dor pungente e chata nos rins.
Raramente perguntavam seu nome ou como havia sido seu dia, queriam é saber dos memorandos e papéis. Papéis.
Zé que é Palhaço Brigadeiro... Teodoro que teve um filho que não sabe o nome, e que põe no rosto desgastado, carregando consigo aquela lembrança daquele único amor, uma máscara tão sorridente que magicamente o torna outro: Palhaço Beringela.
Suspira. Desiste completamente do café. Puxa a gaveta da cozinha e tira a faca de corte.
Com ela rasga o peito e enfia a mão dentro e agora segura um coração palpitante como um bichinho recém-nascido, quente e pulsante frágil, frágil.
Segura com cuidado para não apertar muito.
O pijama fora transformado magicamente de um amarelo doente em um traje salpicado de vermelho, mais escuro no meio e mais claro à medida que se afastasse do lugar onde antes era seu peito fechado e onde agora se abria uma enorme boca.
Foi um pouco difícil abrir as portas usando uma mão só e andar até o circo também foi penoso: seu chinelo estava uma poça só.
O tempo todo ele tinha que conter a vontade de correr até o circo com um sorriso aberto e os olhos brilhantes, mostrando o que tinha em suas mãos. Isso seria uma excentricidade que arruinaria a suavidade do seu gesto.
Uma dona deixou cair as compras, mas ele não pode se abaixar para ajudá-la. Olhar acusador. Nem ao menos havia lhe notado as mãos ocupadas.
Ele era invisível como o habitual, mesmo em seus trajes novos. Por sua vez, as outras pessoas também eram invisíveis- aquele momento era somente dele. Assim sendo, se permitiu virar com desprezo o seu rosto e combinou consigo mesmo de não párar por mais ninguém.
A fila da bilheteria era pequena.
Ao chegar a sua vez foi se lembrar de que não havia trazido dinheiro.
Não precisou dizer nada, do outro lado da gradinha abriu-se um sorriso compalcente e lhe foi empurrado um ingresso: "Cuidado com isso que você carrega, hein e evite sujar o ingresso, precisamos reaproveitá-lo na próxima noite, não estamos ganhando muito, você sabe!".
Ele acenou acertivamente com a cabeça e mostrou os dentes em um esboço de sorriso meio adoentado, meio sem jeito. Sentou-se lá no fundo, mas mesmo assim se sentiu nú, pois na arquibancada, projetada para cinquenta espectadores, não se sentavam mais do que quinze.
Os tambores rufaram e ele pela primeira vez viu, com seus olhos, o pequeno coração (pequeno para um homem da sua idade, certamente deve ter murchado um pouco) bater mais forte, quase saltando das palmas de suas mãos.
Então, com um grito profundo, ele atirou seu coração às areias do circo. Ele caiu bem no meio do picadeiro, causando um pequeno levantar de poeira.


Para Paulo Paes. Inspirado por Poema Circense.