terça-feira, 30 de março de 2010

Relato: Borboleta de casulo de mariposa

O ser humano é um animal triste. A sensibilidade torna as coisas pequenas em memoráveis. Tudo que é belo é um pouco melancólico. Se fôssemos simples gatos, preocuparíamos apenas em nos limpar com a língua áspera e pequenininha, ignorando o universo dos outros milhares de gatos. Os gatos são os animais mais livres que já conheci.
Entendo quando comparam, por exemplo, um facínora com uma besta selvagem. Tal como a besta, o criminoso é alheio à sua humanidade e por não vivê-la, não se identifica com uma lágrima ou com uma gargalhada.
Mas nada explica o suicida. Nem mesmo a Sophia Coppola e suas virgens castradas. Por isso o suicídio é tão terrível. Não há morte mais triste. Talvez porque com cada suicida, várias pessoas-inclusive eu-pensem também em se suicidar um pouquinho e temem que o mundo termine em um caos de pés que se balançam longe do chão. O ultimato da escolha. A única escolha que se faz sozinho... que como uma mariposa imponente rasga seu casulo e esvoaça em nossas mentes de tempos em tempos.
Opção desconsiderada. Portanto, nem se deve ser chamada opção. É mais uma coisa.
Coisa com a qual me deitei algumas vezes. Afundei a cabeça no travesseiro e suspirei ignorando-a. Deixar de existir. De ter dores, minhas dores inventadas e tão particulares. Viver cansa. É como se cada vez que o ar entrasse pelas narinas, ele fosse sôfrego e pesado, mas basta prender o ar por dois segundos para se desistir. Se eu pudesse simplesmente sumir já o teria feito a cada ruflar dessas asas.
Penso se não é algo que tenho em comum com todos os seres humanos, que por natureza são tristes. Penso o que nos mantêm afastados do suicídio. Penso nos meus cigarros e no câncer de pulmão. Escolhas. Ontem li: "sem meus cigarros eu morro" e a frase me pareceu absurdamente verdadeira. Morro com eles e sem eles.
A vida é um beco sem saída onde no fim se entrega o óbolo ao barqueiro sombrio querendo ou não. Todos teremos afinal, as moedas por sobre as pálpebras rijas. Isso é natural. 
O que nos faz tragar cada pedaço dessa vida? Medo da cinza chegar até o filtro? Amor? Masoquismo? O outro? A "natureza"? Muitos diriam que o medo do que virá depois do último trago. O ser humano é metódico e sistemático. Todos sem exclusão temem o desconhecido com o medo mais infantil e enorme de que se é possível lembrar. 
A imaginação é minha borboleta. Disse alguém de dentro de um escafandro. O escafrando é uma prisão em que se é permitido apenas piscar.
Nesse momento, tão grave, devemos abrir todos os casulos(de outro arthropoda). 
Podemos então, pegar uma corda em volta de um pescoço e transformar em um rabo longo. Dedos tensionados em garras retráteis dentro de uma patinha fofinha. E o som da última tentativa de inspirar e transformar em um miado louco e selvagem. Um miado de alguém que de agora em diante se ocupará penas de caçar borboletas, espreguiçar de maneira elástica e ser o mais livre dos humanos.   

(Para uma menina quase desconhecida e muito impetuosa)

quinta-feira, 18 de março de 2010

A girl to remember

Tinha passado por um momento terrível. Alguém que tinha sido parte de mim por quatro anos não cabia mais em meus planos futuros, e o horror e o surrealismo de toda a situação era que essa mulher tinha sido a companheira perfeita e não havia desculpa alguma para a minha atitude. Eu não a queria e ela ainda me amava.
Hoje vejo que a mantive indefectivel como a Lady Di ou o J.F. Kennedy. O rei-morto, que para se tornar um deus precisa do ápice da perfeição: a desvinculação com a vida mundana/humana, afinal, ninguém pode confiar na perfeição que não seja efêmera. Essa mulher, minha mulher, vai ser lembrada como a melhor que tive enquanto eu existir. Não sou capaz de enumerar um único defeito, e se me perguntam sobre ela, digo que foi meu único namoro "passado" que foi significante.
Mas minto. Como omitir as manhãs que outra me manteve acordado. E as noite de sono que ela ainda me tira com pesadelos. Algoz, algoz, algoz. A culpa é a maior das torturas a se carregar. A culpa seria, ao meu ver, as correntes de incontáveis nós carregadas pelo suposto fantasma do Scrooge de A Christmas Carol do Dickens.
Nunca imaginei que aquela garota de roupas descoladas e um jeito meio etéreo seria minha. Na  verdade, mais do que imaginar, eu a desejei. Do jeito com que se deseja coisas intangíveis. Um nariz pontudinho e arrebitadinho, as orelhas élficas e as pernas longas em relação ao torso. Nunca me esquecerei de como o sol desenhava as luzes na blusa multicolorida e a beleza felina daqueles dedos longos. Tinha algo felino na maneira como ela se espreguiçava ou estalava os dedos.
Ela foi a única pessoa que me deu flores.
Ela é uma música do Nick Cave. O era mesmo antes de saber como tudo acabaria. Embriaguez, murros na parede, e a distância instaurada entre aquela menina frágil e a fera interna.
Ela era mais intensa do que eu poderia aguentar. E não consegui partir sem partí-la.

Nobody's Babe Now - Nick Cave and The Bad Seeds
(A Garota de Ninguém)
 I've searched the holy books

(Procurei nos livros sagrados)
Tried to unravel the mystery of Jesus Christ, the saviour
(tentei revelar o mistério de Jesus Cristo o Salvador)
I've read the poets and the analysts
(Eu li os poetas e os analistas)
Searched through the books on human behaviour
(pesquisei nos livros de comportamento humano)
I travelled the whole world around
(eu viajei por todo o mundo)
For an answer that refused to be found
(por uma resposta que se recusa a ser encontrada)
I don't know why and I don't know how
(Não sei por quê nem como)
But she's nobody's baby now
(mas ela não é a garota de ninguém agora)

I loved her then and I guess I love her still
(eu a amava e acho que ainda a amo)
Hers is the face I see when a certain mood moves in
(é dela o rosto que eu vejo quando certo humor se instaura)
She lives in my blood and skin
(Ela vive em meu sangue e pele)
Her wild feral stare, her dark hair
(Seu olhar selvagem, o cabelo escuro)
Her winter lips as cold as stone
(Seus lábios de inverno, tão frios quanto pedra)
Yeah, I was her man
(sim, eu foi seu homem)

But there are some things even love won't allow
(Mas há coisas quem nem mesmo o amor permite)
I held her hand but I don't hold it now
(Eu segurei a mão dela mas não a seguro agora)
I don't know why and I don't know how
(Eu não sei por quê e nem como)
But she's nobody's baby now
(Mas ela não é a garota de ninguém agora)

This is her dress that I loved best
(esse é o vestido dela que eu amava mais)
With the blue quilted violets across the breast
(com as violetas azuis entrelaçadas ao redor do seio)
And there are my many letters
(e essas são as minhas muitas cartas)
Torn to pieces by her long-fingered hand
(Rasgadas em pedaços por aquelas mãos de dedos longos)
I was her cruel-hearted man
(eu fui seu homem de coração cruel)
And though I've tried to lay her ghost down
(e apesar de tentar afastar de mim o fantasma dela)
She's moving through me, even now
(ela se aproxima de mim ainda agora)
I don't know why and I don't know how
(Não sei porquê nem como)
But she's nobody's baby now
(mas ela não é a garota de ninguém agora)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Saudade Legítima.

A verdadeira vela póstuma, ao chorar sua cera, diz "Saudade!" ao invés de "Adeus".