segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Sobrevida.

Em dias quentes como esse não se podia ao menos chegar em casa e se sentir dignamente humano. Como se sentir um homem morando em um apartamento que fede à gaiola de camundongo? Sempre me imagino no trabalho como se estivesse na minha rodinha: gira, gira, gira, gira... só que com hora pra começar e parar.
Já cogitei me mudar para o quarto andar, mas o prédio é muito antigo e o morador que chegou antes de mim já está aqui há dez anos... e todos são tão resigandos com suas vidinhas chinfrin, que não são diferentes de mim. Mudar nunca é confortável mesmo, e ainda que o fizesse nada garantia nada. Melhor tolerar isso mais uns 6, 7 anos e comprar uma casa de verdade.
A porta de madeira empenada abre, jogo minha pasta sobre a mesa redonda. É prático ficar na única sala, posso ver toda a extensão do apartamento. Minha cama com os lençóis embolados como uma jibóia gorda me cumprimenta de reslaio da porta escancarada do meu quarto. Não estou com vontade de comer por causa do cheiro. Urina de mendigos ou outros. Tem um viaduto no centro que tem esse cheiro... me sinto impelido a passar por ele de nariz tampado, mas fico com medo de ofender o corpo estirado e ainda não morto encostado na parede do tal.
Talvez se eu fumar um cigarro e acender um incenso misture tudo e eu não possa identificar esse cheiro em específico. "Muinha", como diz minha mãe... é uma coisa acre, cheira à sexo, fios enferrujados, e sujeira. Bom, de qualquer modo, o melhor que faço é tirar esses sapatos e me estender no sofá e assistir todos os canais. Dez segundos de cada um. É meu hobby favorito. Santo controle remoto.


Espere! Isso é interessante! Adoro a música de notícias urgentes... me remete à obituários ilustres, catástrofes iminentes nas ilhas da vida, atentatos terroristas nos Estates...
E foi assim que descobri. Nesse instante. Nunca pode se duvidar dessa emissora e seus impassíveis repórteres. Além disso, nunca tinha visto durante toda a minha vida um deles chorar. Não assim, com soluços. Acho que meu vizinho está chorando também. Choro de mulher é mais tolerável, elas choram por qualquer motivo... mas esse choro que vem das tripas, esse choro de profundo desespero... é diferente. A Terra está morrendo, de cancêr generalizado(foi essa a metáfora?), e a espectativa de vida é de cinco anos no máximo. Máximo?! Nem um cachorro pulguento vive menos que isso. Não consigo assimilar a notícia. Talvez seja melhor assim. Sejamos racionais. Caneta, caneta... aqui. Onde coloquei meu extrato?! Acho que ainda tenho uns cinco mil na poupança que estava guardando pra sair desse apartamento. Droga!! Deveria ter me mudado e pagado aluguel... ninguém vai comprar um imóvel fedendo a mijo se...se a Terra está morrendo. Calma aí velho. Não se descontrole... autopiedade vai te jogar no poço da autodestruição e você vai se acabar antes de soarem as trombetas do juízo final.
Bem, o que tenho é suficiente para não ter que trabalhar, na pior das hipóteses poderei viver uns anos a mais que a média(tirando os anos de sono)... isso se os demais decidirem que o melhor para suas curtas vidas vai ser não surtar. Tarde demais... nunca ouvi tantas pessoas chorarem juntas assim. Nem quando o Papa "João de Deus" morreu. Interior!!! No interior as pessoas são mais alienadas e a fé delas é mais cega... não vou ficar na casa dos meus pais, mas decerto posso me arranjar por lá com o dinheiro... mas poutz... meu cartão não me dá direito à um grande saque... e pelo barulho de vidro estilhaçado e polícia o inferno já começou. Vou tentar a sorte... me lembro de ter visto um caixa rápido no posto. Se estiver fechado posso arrombar a entrada.


É inútil usar a buzina... mas com uns quinze minutos consigo chegar até a estrada de terra... a Terra...morren.... aliás!!!! no campo fica mais fácil cultivar. E estocar coisas... ahhh os americanos que estão bem... já se sentiam os reis da cocada preta, imagino como estão agora que a paranoia deles serviu pra alguma coisa... abrigos anti-aéreos e feijão enlatado. Pensando bem eu preferia morrer... morrer do que viver assim. Por que as pessoas não continuam a viver normalmente?? Cinco anos de caos é muito tempo. Pronto! humm... cacete!! Esqueci que pai prefere vinho seco... devia ter comprado ele ao invés do suave... só eu estava comprando mesmo. O atendente da lojinha de conveniência do posto estava chocado demais pra me ajudar a achar as coisas... tive praticamente que passar as compras sozinho... isso aqui deve dar pra um mês pelo menos... que sorte! Os velhos costumam guardar muitas coisas... tenho certeza que na casa deles tem uma porção de bebidas... aquelas que eles ficam com dó de gastar... rá! acho que vai ser a ocasião ideal.


O menininho que corria pra lá e pra cá fica surpreso com a chegada do meu carro... os faróis ainda estavam acesos e ver os olhinhos parados em mim... se perguntando... me fizeram lembrar de apagá-los... essa foi a primeira porteira, por que ele se levantou as três e quarenta?! Na certa é filho de algum vaqueiro ou coisa assim! Segunda, terceira, quarta porteira. Nada de anormal nada além da Terra morrendo... Páro o carro e ele dá aqueles estalos típicos de chão de terra . Minha mãe abre um sorriso de boas vindas meio tenso, limpa a remela dos olhos antes de me abraçar. Não me esperavam aqui em uma quarta feira, ainda mais depois de um ano quase sem vir aqui. "Calma, mãe! Tá tudo bem! É que decidi tirar férias antecipadas... errr... bem... teve uma morte no trabalho... um dos gerentes.... não não o conhecia... aí ficamos parados desde ontem... e decidi aproveitar a deixa" (ainda bem que meus pais não assistem o noticiário das dez e a manhã quase acabou de nascer). Os passarinhos cantam no pé de jambo... pai como sempre já está no curral... ele sai cedo e deixa ela dormindo, quando volta passa um café e os dois comem um bolo nada bom pro colesterol de nenhum deles. Rá! Grande bosta eu ter me preocupado com isso! Acredito que não demora muito para eles ligarem a TV ou o rádio... "Mãe, pai levou o rádio?...não, perguntei a toa... e que lembrei de trazer pilha". Espero que meu sorriso não tenha saido fingido demais...


Enquanto mãe está na cozinha, vou tirando as coisas do carro... aproveito para quebrar "acidentalmente" a antena da tv...isso me dará algumas horas. Meus olhos estão pulando. Preciso dormir... não vou poder ficar cinco anos sem dormir. Depois que eles souberem traçamos nosso plano de... de... sobrevivência. Minha mãe está feliz porque estou aqui, do quarto escuto ela cantando baixinho, acho que é uma música de coroação da Nossa Senhora ou coisa assim, sua voz chega suave, distante, quase imperceptível no meio do som da roça que acabou de espreguiçar, o galo, as galinhas de angola, algumas rãs e grilos...passarinhos... tudo se mistura com os meus sentidos... estou quase caindo... estou embalado... a cama faz um barulho sôfrego quando deito... a janela enorme de madeira pintada de azul está fechada, mas um cheirinho gostoso de mato chega até as minhas narinas doloridas. Cheiro de umidade. Posso fechar os olhos e enxergar através da parede, posso ver as cascas lascando do pé de jabuticaba e as gotinhas da grama molhando a minha galocha. Um gravetinho ou outro se quebra quando eu piso neles. Mamãe e papai estão atrás de mim... minha mãe com uma das mãos colhe umas laranjinhas capetas e com a outra segura o avental formando um cesto. Pai está mais embaixo no açude. A água é barrenta e em alguns lugares ele me mostra a argila que posso usar pra fazer fortalezas para os meus soldadinhos...Ele olha pra trás e me dá um sorriso. O céu está aberto e as nuvens dançam por cima da cabeça de todas as pessoas do mundo. Olho para o lado e vejo minha mão pequeninha dançando no ar "_ Olha mamãe! Sou um avião...vruuuum!".


* Inspirado pela canção Five Years(álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, 1972) do David Bowie.