Estive em um jantar de gala ontem. Sobre a mesa estendia-se um tecido impecavelmente alvo e os pratos de porcelana fina estavam dispostos sobre ela junto com a comida: batata, cogumelos e carne.
Desde do dia em que a conheci não consigo mais comer carne. O vermelho da peça mal passada brilhava e eu tinha que controlar minha ânsia de vômito. Já havia estado em muitos jantares como esse e me esbaldado desse vermelho. Ainda consigo sentir a textura viscosa e o sabor rançoso entre meus dentes, acariciando minha língua.
Sou um homem idoso agora, consigo me desculpar pela indelicadeza dizendo que meus dentes estão muito fracos para mastigar um bife e que tenho preferido as sopinhas. Os anfitriões se divertem e esboçam sorrisos simpáticos, por vezes me oferecendo um cereal qualquer.
Eles não são pessoas ruins. A maioria dos que conheci são apenas adultos mimados tentando sobreviver ao genocídio do planeta agindo como se sua rotina fosse a mesma de quando eram apenas crianças. Mas não é. Vivemos no subsolo agora e temos apenas um terço dos mantimentos que costumávamos ter. E não existem mais crianças. Somos estéreis desde o impacto da primeira bomba.
Alguns são parcialmente queimados, os cabelos ralos por causa da radiação. As mulheres mais ricas usam perucas feitas de pêlo de ratos. Sobraram poucos seres humanos e com exceção dos das fazenda de corte, somos doentes e senis.
Não há muitas mulheres trabalhando nas minas mas a matrona das fazendas entregava um sanduíche para o marido quando a bomba caiu. Seus óvulos saudáveis manipulados in vitro geram bebês anencéfalos que são criados até a puberdade, cortados e vendidos.
Por muito tempo imaginei que aquilo não faria mal nenhum, pois aqueles bebês seriam incapazes de sentir, portanto incapazes também de viver. No subsolo a criação de porcos, vacas ou outros animais de porte grande se torna inviável por causa dos poluentes. Os seres humanos in vitro gastam poucos recursos(são alimentados através de sondas).
Quando ainda estávamos na superfície, salvei um dos donos das fazendas de corte e ele me devia um favor. Minha esposa morreu quando eu ainda era um rapaz de 20 anos e agora estou só. Ele me presenteou com uma mulher. Uma menininha.
É desnecessário dizer que se tornou proibído deixar descendentes das fazendas de corte para repopularem o planeta. Os poucos sobreviventes votaram em uma assembléia pela extinção da raça humana. Vimos muitos horrores que nossos avós jamais imaginariam existir um dia.
Minha pequena companheira se chama Luz. Ela vive em um quarto de um metro e meio e só convive comigo. É fisicamente perfeita mas apresenta desvios comportamentais devido ao encarceramento e ao isolamento da espécime humana do dia do seu nascimento até quando a recebi.
Não deve ser a única. Ainda que a maioria dos homens tenham perdido suas ereções com a bomba, a perversão sexual continua inerente ao ser humano. Acredito que com dinheiro bastante para criar uma plantação de cogumelos ou tubérculos os aristocratas quase todos devem se dispor de favores sexuais dessas pobres garotinhas, afinal, suas mulheres padecem de ressecamento vaginal e mau-hálito.
Imagino que alguns prefiram os garotinhos.
Minha Luz será criada para perpetuar a espécime humana caso a radiação não destrua seus ovários como fez com as outras mulheres. Os cientistas calculam que em 10 anos a radiação se dissipará, mas os sobreviventes talvez não alcancem essa longividade. Como disse, quase todos temos cancêr. Eu defeco sangue há cerca de um mês e na semana passada começei a sentir dores intestinais agudas. Espero, com o auxílio médico, sobreviver até Luz completar 15 anos.
A mantenho em um abrigo anti-radiação, a alimento com a ensosa ração regular, e deixo que ela desenhe, cante e brinque com suas bonecas. Leio para ela todos os dias. Explico que ela guarda a sementinha da raça humana. Ela entende apesar de ter conhecido as plantas somente nas gravuras de um livro. É fácil para ela, mais fácil do que para nós que conheçemos outa vida.
Implantei um mapa da saída das minas e instruções de como se inseminar em uma capsula subcutânea. Preciso agora conseguir o esperma de um exemplar de corte. Ouvi dizer que comprar exemplares vivos por um valor diferenciado, claro, anda em voga. Quem não gosta de carne fresca?
Mari, gostei muito do seu texto. Maduro e inteligente. Me lembrou um curta francês de 1963. La Jetée. Bjo!
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=ClvTYd4XnEc
Ola Mari, continuo me deliciando ao te ler. Gostei bastante, essa coisa meio pós-apocalíptica me agrada, ando escrevendo coisas nesse estilo, mas tenho vergonha ou medo de dividir ou quero continuar escrevendo pra ver no que vai dar.
ResponderExcluirBjokas, até mais.
Menina parabens sempre um conto forte precisamos disso!
ResponderExcluirSamantha e Rafael! Muito muito obrigada!Vocês são meus amores!
ResponderExcluirVeloso! Que delícia de visita(e que grande honra)! Obrigada!
Pesado, denso e doce. Gostei.
ResponderExcluirHá sempre esperança mesmo no mais profundo breu.
Oi Elisa! Obrigada! Minha melancolia e obscuridade tomam os meus escritos, mas ainda bem que somos seres dúbios... e um pouco da minha ternura atenuam os temas...
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