O que faço não é aceitável. Sou um gari da carne morta. Quem toca cadáveres é sempre estigmatizado. Ainda que meu trabalho seja misericordioso.
Gosto de observar o resultado. Faço eles parecerem dormir, pararem de se decompor e soltar odores desagradáveis. As pessoas têm muito nojo dos mortos. E dos doentes. E de apertar a minha mão.
Enquanto muitas sociedades lidam com a morte como parte da vida, nós a escondemos por sobre uma maquilagem. A mecanização nos afastou do que somos por baixo da pele e dos dedos que tocam a touchscreen. Somos todos carne. E a carne apodrece ao invés de enferrujar.
A natureza da carne morta é uma visão aterrorizante. O cheiro, os pés duros e esticados como dois peixes agônicos. O branco arroxeado. Os olhos nem sempre fechados. O rosto por vezes congelado em uma careta agônica. Não há dignidade em se morrer.
É bom devolver aos rijos um ar mais natural. Assim eles deixam de ser repugnantes e podem ser velados. As pessoas se despedem de um rosto e não de uma idéia. É necessário ver o fim sobre um véu atenuador.
Então, mais uma vez eu descubro a artéria, faço uma pequena incisão e dreno o sangue, enquanto ele é substituído por líquido embalsamador com corante. Massageio toda a extensão do corpo para que o líquido se espalhe e faça a pele passar de um tom azul à um rosado.
Sou o último pulsar dos mortos. Sou seu coração.
O texto ficou maravilhoso, Mari!
ResponderExcluirObrigada Thiago! :-)
ResponderExcluirDisse tudo Mari, adorei a forma como vc construiu o texto. Você sempre diz tudo com uma linguagem toda sua, adoro isso. Bjo
ResponderExcluirObrigada Rafa. Te adoro!
ResponderExcluir