Passo em frente a um casarão todos os dias. Ele tem o muro baixo-coberto por hera- e deixa entreaver nuances da casa com cortina em todas as suas janelas.
Sempre gostei de muros com hera. Elas significam o que diz o som do próprio nome: perseverança e paciência de vê-las crescendo, década após década, até um dia enfim terem aquele aspecto fofo e denso. O concreto totalmente escondido pelas raízes e musgos.
Nesse casarão tem um jardim. Na verdade, muitas plantas espalhadas de maneira caótica aqui e ali. E uma delas é um arbusto que fugiu para fora da casa e que dá flores pequititas.
Um dia vi a senhora da casa cuidando daquele arbusto. Ela estava com os olhos cheios d'água e arrancava com ódio algumas ramas quebradas. Eu a dei bom dia e ela me parou. Disse que as pessoas não respeitam mais as outras, que estragaram o seu arbusto. E eu a contei que o nosso jardim, que não possuía grade, havia sido completamente roubado da noite para o dia. Só encontramos os buracos onde ficavam as plantas.
Ela me contou muitas coisas naquele dia. E em um rompante sôfrego me disse que um de seus filhos havia morrido dois anos atrás. E me disse que não conseguia superar isso, que não conseguia mais rezar ou se sentir feliz.
Fiquei atônita pois não passava de uma desconhecida. O que eu poderia dizer? Ensaiei algumas palavras. Ela chorava, seu corpinho curvado balançava, e não pude deixar de notar que ela havia sido uma mulher muito bonita um dia. Suas roupas de jardinagem mostravam bom gosto e seu cabelo ainda que branco era muito volumoso, e caia em ondas sob seus ombros, os olhos muito azuis e profundos e os traços finos. Talvez seus pais tenham sido estrangeiros.
Eu raramente a vejo. Ela é como um fantasma. Em quatro anos só a encontrei duas vezes, no dia desse incidente e uma vez depois dele. Meu coração fica triste quando passo lá de frente. Temo pensar que ela desistiu da jardinagem. A jardinagem é uma atividade que salva a alma das pessoas idosas. Principalmente das mulheres que eram matriarcas de uma família grande. Elas tinham muitas obrigações, cuidavam da casa, dos filhos, trabalhavam...e depois, fracas, por causa de tanto se esforçar, se vêem privadas de tudo. Cultivar e fazer crescer as plantas é uma obrigação leve que as faz sentirem vivas.
A empregada da casa tem feito isso. E eu imagino a senhora tão sozinha ao olhar alguns retratos ou sentar hipnotizada em frente à televisão.
Não consigo saber se eu fui apenas uma ouvinte ou se aquilo foi um pedido de socorro. Adoro histórias! Sentaria feliz com ela e tomaria uma xícara de chá a escutando contar coisas sobre seus pais ou sua vida de moçinha. Tive curiosidade. Quase pesquisei sobre ela. Quase a chamei quando passava pelo portão ao longo desses anos. Mas como disse anteriormente, nunca fomos nada senão desconhecidas...e tenho medo de incomodá-la.
Talvez seja carência minha que não tenho mais avó desde muito novinha. É tão sombrio admitir isso, mas sou egoísta e falha. A única avó que conheci não tinha mais lucidez ou era muito sizuda. Ainda assim, eu gostava de a observar trançando os longos cabelos ondulados que eram tão prateados e depois os amarrando em um coque.
Outro dia recebi uma resposta. Uma resposta que dizia que eu fiz bem em não procurá-la. Quando passei de frente o muro de era(já não mais olhava por sobre ele) escutei um único latido profundo e meus olhos encontraram os olhos nublados de uma cadelinha muito muito velha. Pequena, peluda, cor de caramelo, e com dois laçinhos vermelhos por sobre as longas orelhas felpudas. O pêlo de sua carinha já completamente branco. Lembrei da minha Lucy e daquela mesma manhã. Estávamos em um banco de ardósia. Eu sentada, fazia carinho em sua barriguinha branca e observava o banco embaçar e desembaçar com a sua respiração. O foçinho pretinho e as patinhas esticadas.
Ah! Então a senhora nunca esteve sozinha!
Achei lindo, Mari! Beijos...
ResponderExcluirMuito obrigada Thiago! :-)
ResponderExcluir