terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Padrões delatores

O reencontrei depois de vinte anos em um jantar beneficente. Ele gargalhava de maneira espalhafatosa tombando a cabeça para trás. Puxava para cima e para baixo seu cônjure, jovem, submisso e com ar de doente.
Tentei fingir que não o tinha visto. Senti o suor escorrer acusadoramente da minha orelha até o colarinho que precisei afrouxar um pouco. Tudo se passou muito rápido. Fingi ignorá-lo, ele me viu, veio até mim. Uma figura grotesca, gêmeos xipófagos em que um não se desenvolve. E fez uma piadinha sobre aquele dia na fazenda, chamando para nós toda a atenção de meus sócios.
Nunca imaginei que esse episódio poderia ser externalizado. O venho mantendo em segredo por toda a minha vida. Fiquei atônito como alguém que assiste o sangue vazar da artéria inutilmente tentando estancá-lo com as mãos.
Tentei estancá-lo com um sorriso amarelo e algum comentário sobre ele ser brincalhão. Não sei se as outras pessoas perceberam minha tensão. Já fazem duas semanas desde então. Não consigo dormir, fazer amor com minha esposa ou brincar com meus filhos.
Estou decidido que a única solução será matá-lo. Éramos crianças. Eu não sou viado. Disse isso à ele. Não sou uma bichinha. Ele acenou que compreendia e prometeu fazer segredo. Ele foi avisado. Lembro me claramente de tê-lo dito que o mataria se ele contasse à alguém que eu o penetrei.
Uma única vez. Não nos beijamos. Ele era tão feminino. E tinha um corte de cabelo de mulher. Era perfumado. Nunca trabalhava na lida com os animais ou o fêno. Eu era apenas um garoto. Ele se insinuava o tempo todo. Achei que fazer aquilo era a única maneira de fazê-lo párar. Me senti aliviado quando me mudei para a cidade para estudar. Achei que nunca mais o encontraria.
Pensei em segui-lo, e quando ele pedisse um drinque e poderia invenená-lo com arsênico. Mas vê-lo seria arriscado demais, assim como pagar alguém para fazê-lo. A solução seria estudá-lo, escolher uma hora do dia em que o encontrasse sozinho e assassiná-lo com um tiro usando máscara e uma arma com silenciador. Teria que me livrar da arma do crime e das roupas. Não poderiam haver testemunhas.
A pior parte foi agir com naturalidade durante os seis meses que o segui e planejei tudo. Passei a fazer musculação e sair do escritório todos os dias na hora do almoço. Me matriculei em uma academia a algumas quadras da casa dele. Por sorte a esteira tinha vista para o apartamento dele. E era a única academia que ficasse a menos de 5 kilômetros do meu escritório. O álibi perfeito caso me interrogassem sobre minha ida até lá. Fazia todos os aparelhos e a esteira sempre por último.
O exercício físico era parte do plano. Precisaria estar em forma... afinal, descartei a arma(seria muito difícil conseguí-la sem deixar um rastro de delatores) e me decidi por esstrangulamento. A localização estratégica da academia foi um golpe crucial do destino. Minha mulher também precisava acreditar que eu estava me exercitando para atenuar os efeitos do estresse do trabalho.
Estava apenas esperando que o momento viesse. O local do crime. A princípio pensei em usar uma blusa de flanela listrada que não faz parte do meu guarda-roupa. Mas as peças baratas produzidas em uma escala grande o suficiente para não serem notadas no caixa não são alinhavadas de acordo com a estampa. Um bolso costurado de maneira randômica em uma estampa torna qualquer blusa dessas tão única quanto uma digital.
Comprei um par de blusas brancas e um par de jeans, e um par de tênis dois números maiores do que eu normalmente usaria. Minha mulher não poderia notar a ausência dessas peças. Apesar do estrangulamento não deixar marcas de sangue, teria que mudar os sapatos por causa das pegadas. Não poderia errar. Qualquer contusão ou arranhão poderia me entregar de bandeija à polícia. Não sei como me sairia em um inquérito.
No dia do assassinato, as nove, furei o pneu do meu carro no caminho do trabalho(deixei-o sem step)... teria somente 20 minutos. Pegaria o metrô. Desceria uma estação mais próxima ao meu carro e iria a pé pessoalmente ao reboque. O tempo que economizaria no metrô seria o tempo que desporia para assassiná-lo. Contaria com a sorte aquele dia. Se tivesse que dessistir por qualquer motivo, deveria pensar em outro jeito.
Esperei no beco escuro onde nenhuma câmera, janela, ou pessoa me espreitasse. E quando ele veio, o puxei. Faziam uns barulhos engraçados e acho que escutei seu pulmão desinflar e morrer. A parte pior foi trocar de roupa. E ter que esperar até o dia seguinte para me livrar da coberta com a saliva e o dna do morto. Muitos assassinos são pegos com essas peças ainda no carro. Tive o cuidado de escondê-las em um fundo falso de uma caixa de papelão onde carreguei umas compras para a casa.
No dia seguinte a coloquei em um pacotes de lixo diferentes e os dispensei ao longo do caminho de ida e volta do trabalho. Algum conhecido me viu, por sorte já sem um deles, tive que fingir comprar um café. Por sorte havia marcado estrategicamente cada um dos lugares. Pelo retrovisor do carro vi um mendigo se apoderar dos tênis. Vi sua boca faltando dentes sorrir.
O corpo demorou três dias para ser achado. Não fui interrogado. Parece que o passado no interior escondia para o morto segredos mais sombrios do que o que tínhamos em comum. Usava um nome fictício. Ninguém sabia seu nome real ou o nome dos seus pais. Espero nunca mais ter que matar alguém.

4 comentários:

  1. Assassino frio, metódico e calculista. Amei!

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  2. Muito obrigada! É bem mais gostoso quando alguém lê isso aqui! :-)

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  3. Olá Mari,
    A trilha da literatura é maravilhosa!
    Parabéns!!!
    Aproveitando pra desejar uma Feliz Natal
    e um Ano Novo cheio de realizações para vc.

    Abraços do Mings

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  4. Caro Mings,
    Fico sempre feliz em ler seus comentários. Eles realmente "make my day". Obrigada e obrigada! Felicidades mil e sempre para você e os seus!
    Beijinhos!

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