Um cão, com o passar da estupidez infantil de seus primeiros anos, decide fugir de seu dono e seus constantes mal-tratos. "Ora!, pensa, por mais fome e cansaço não passarei, já que trabalho todo o dia e de noite guardo a fazenda, sem que eu mereça uma migalha de pão do café da manhã dos humanos".
E antes que dessem por sua falta, roeu a corda que lhe prendia à bancada da varanda e seguiu muito seguro em direção a cidade. O dia não tardou a amanhecer e o sol lhe fervia os pobres miolos, sua língua pendia de sede. Foi quando avistou uma sombra fria e generosa em meio a alguns arbustos na beira da estrada. Decidiu parar ali um pouco para se recompor e continuar a caminhada.
Uma diminuta pardal que havia feito seu ninho ali, se assusta tanto com a inesperada aparição, que se deixa cair entre as patas estiradas do enorme e magro cão, que até então dormia um sono pesado, alheio a tudo. Atordoado e com a pequena ave a poucos centímetros de sua bocarra, o cão diz "Dê-me um bom motivo para não devorá-la pois estou faminto!". A pardal timidamente ergue uma de suas asinhas e mostra ao cão o seu ninho com três filhotinhos pelados, cegos, frágeis e tão famintos quanto o cão.
O cão suspira e aproveita pra coçar atrás de suas orelhas. A mamãe pardal feliz por sua sorte, percebe imediatamente que aquele sim é um cão bondozo e sente pena de seu amigo pulguento de costelas protuberantes. "Muito bem!" diz a ave "me siga pela cidade e eu te recompensarei por ter poupado a mim e aos meus pequenos filhotes!"
Os dois seguem a trotar até a cidade e lá chegando a pardal orienta o cão para esperá-la em um beco próximo. Muito acostumada a carregar minhocas e muitos gravetos, a furtiva ave rouba-com destreza exemplar-uma comprida lingüiça do mostruário de um açougue e leva até o seu simpático companheiro. Depois de comer o maior pedaço de carne que já vira na vida, o cão se mostra um verdadeiro glutão e pede a sua amiguinha que por gentileza o conseguisse também um pouco de pão branco. Imediatamente a pardal voa e volta com uma bisnaga inteira.
Achando fácil a tarefa de alimentar o cão e tocada pela alegria com que o mesmo balançava seu rabinho fino, a pardal decide convidá-lo para morar entre os arbustos e ser seu vizinho. Assim, ele poderia afugentar as raposas e outros animais que quisessem devorar seus filhotes e em troca, ela lhe arranjaria sempre boa comida dispensada pelos humanos.
O cão arfa de felicidade já imaginando os futuros banquetes e antes de seguirem até os arbustos, servem-se da água de um grande coxo onde dois cavalos espantavam preguiçosamente as moscas sacolejando suas longas crinas pretas e embaraçadas.
No meio do caminho, o cão que parecia uma melancia enfeitada com quatro patinhas esqueléticas e um longo focinho, deixa-se cair no meio da estrada de terra fofa e pôe-se a cochilar com seu ar infantil. A pardal compreende que seu amigo está cheio demais para proseguir e se posiciona na estrada afim de vigiá-lo o sono.
Ao longe, uma carroça se aproxima e a pardal esvoaça sobre o carroceiro para alertá-lo. Indiferente o maldoso carroceiro atropela covardemente o cão que antes de sucumbir à lenta e dolorosa morte lança um languido olhar de adeus à sua diminuta amiga.
A pardal como sua primeira vingança, fura com bicadas violentas, os dois barris de vinho que eram carregados na carroça, deixando com que o líquido avermelhado manchasse a terra da estradinha. O carroceiro sente o cheiro de vinagre evaporado pelo sol e ao constatar a perda de sua carga diz: "Pobre e miserável que sou eu-perdi meses de trabalho no vinhedo" e a pardal responde "Não pobre e miserável o suficiente pois há de pagar ainda mais pela covardia que fizeste com o meu amigo".
Tomado por ódio, o homem tenta acertar a pardal com uma pedra, mas erra a pontaria e acaba por acertar a cabeça de um dos seus cavalos que cai morto. O homem se ajoelha junto ao cavalo morto e exclama "Pobre e miserável sou eu-acabei de matar um dos meus cavalos" e a pardal novamente responde que ele ainda há de sofrer mais por ter atropelado o cão.
O homem, sem a sua carga e sem o melhor de seus cavalos se vê obrigado à voltar para casa. A pardal voa furiosamente em volta do homem que tenta agarrá-la furioso e fingindo estar cansada, deixa-se pousar sobre a cabeça do outro cavalo. O carroceiro, a achando que a ave era incapaz de voar naquele momento, com um ar de esperteza arranca um estilingue do bolso e acaba matando o seu segundo cavalo. Ao ouvir mais uma vezo resmungo do homem, a pardal vocifera que ele há de pagar em sua casa pelo ato maldoso que cometera e se adianta rapidamente até a choupana onde ele morava.
Quando o homem chega em casa, encontra a mulher aos prantos, pois um bando de pardais e outras aves estavam devorando toda a comida que eles guardavam na dispensa e também o trigo que estava no ponto de ser ceifado. Eles então, sem comida ou dinheiro, lamentam por sua miséria e vêem a pardal surgir na janela e responder "Não miserável o bastante pois há de pagar com a própria vida, a vida que tiraste do meu amigo". O homem e a mulher tentam por muito tempo agarrar a pequenina pardal até que por fim o homem a segura firme entre as mãos e notando que a avezinha era esperta demais para se prender por muito tempo, ordena a sua mulher que agarre o machado enconstado junto a lareira.
A pardal começa a bicá-lo e a se controcer dentro de suas mãos e o homem, se vendo prestes a perdê-la, começa a gritar desesperadamente para a sua mulher-a não mais espertas das mulheres- que a matasse ali mesmo em suas mãos. A tola mulher, não menos enraivecida que o homem, desfere com toda a sua força um golpe de machado. Mas eis que a pardal escorrega das mãos do cruel carroceiro naquela exata hora e ele ao tentar agarrá-la novamente recebe fatalmente a machada em seu crânio.
Exausta, a pardal junta algum trigo da dourada plantação em seu biquinho e voa serenamente para os arbustos onde os seus filhotes a esperam a piar com seus bicos abertos.