quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O Machado do Homem de Lata

        A lua jazia tão meticulosamente partida no céu que parecia que alguém o tivesse feito com um machado afiado. E ao girar um pouco a minha taça de vinho, notei que o America bradava: "Oz never did give nothin' to the Tin Man, that he didn't, didn't already have."(Oz nunca deu nada ao Homem de Lata, que ele já não tivesse). Será que o Homem de Lata partiu a lua ao invés de partir a lenha?!
        Carla veio de dentro da casa e abraçou minhas costas embrenhando seus braços com os meus. Lembro-me como se fosse ontem: Ela parecia melancólica e sugeriu que levássemos o Jonathan. Então ela me beija a bochecha e caí sobre o acento. Pousa a cabeça meio de lado e olha pra algum lugar que não existia na varada e depois volta o olhar pra mim, se desenclina da cadeira e começa a falar freneticamente. Suas mãos agitando em frente ao corpo. Fala sobre o irmão caçula o tempo todo. 
          Eu era tão apaixonado pela Carla que ela poderia me pedir para que levássemos um idoso obeso e com artrite que eu aceitaria prontamente. Jonathan definitivamente não me daria problema. Um bom rapaz, pensei. Seria um excitante passeio de família. Outra coisa que pensei é que o Jonathan tinha um ótimo condicionamento físico por causa da academia em que trabalhava. Acho que a Carla pensou nisso também.
         Dali a dois meses embarcávamos rumo ao Nepal, mais de oito mil metros na primeira escalada. Ammapurna, uma montanha perigosa devido à queda de degelos. Há quem saliente que essa montanha era mais perigosa do que o Pico Everest, sua falta de oxigênio e também suas temperaturas extremas. Mas depois de Ammapurna poderíamos fazer o trek até o lar do legendário guro hindu Padmasamba, a pirâmide de gelo Dhauligiri e ainda exploraríamos Machhupuchhare, considerada uma das montanhas mais lindas do mundo.
         Nossa expedição contava com mais dois ou três locais que serviam como guias até a face da montanha e outros três alpinistas que eram alemães, eu acho. Todos experientes, menos Jonathan. Acho que esta era a segunda ou terceira montanha dele.
         Em determinado momento da nossa última escalada, eu ia na frente, por ser o mais experiente, Carla logo depois e Jonathan por último. Pensamos nessa configuração porque em caso de algum escorregão, o corpo de Carla faria menos pressão na corda do que o de Jonathan. Mas Carla se distraiu e deixou a corda que unia os dois se desgastar contra a rocha e Jonathan se viu preso somente à corda de segurança. Ele olhava para mim com dois olhos enormes e ingênuos quando o pino da corda de segurança começou a soltar. A pressão do meu sangue comprimia meus ouvidos e eu o sentia quente e em jatos shhhhh shhhhh, minha cabeça meio zonza. Não queria ser o herói, mas se eu conseguisse manter a calma talvez salvaria à todos nós... continuei escalando... o barulho seco das cordas cedendo atrás de mim.
           Não escutava muito além de minha própria cabeça e a voz de Jonathan gritando "Me ajuda, me ajuda, Meu Deus, me ajuda cara", Carla  estava em um silêncio sepucral. Eu tentava desesperadamente martelar um segundo pino para baixar a corda. Em um determinado ponto minhas mãos começaram a sangrar sem que eu ao menos notasse. Foi quando escutei Jonathan gritar "Você me matou sua puta!", saí do meu transe e vi Carla cortar a corda de Jonathan. Segundos depois da pancada ôca do corpo dele com o chão, ela chama meu nome e me pergunta: "Se não fizesse isso íamos nós três cair, não é?". A voz dela me soou tão infantilizada e alienígena que eu me limitei a acenar positivamente com a cabeça.
            Decidimos descer. O fizemos em silêncio. Escutava Carla fungar o tempo todo. Só olhei para ela uma única vez no trajeto inteiro. Era uma atitude perigosa não olhar para baixo, para ela, mas achava que ia enlouquecer se continuasse a vendo com o rosto congelado e desfigurado pelo inchaço enquanto as lágrimas desciam e desciam as maças de suas bochechas.
           No inquérito policial concordamos em dizer que Jonathan havia se sacrificado para nos salvar. O que não deixava de ser verdade. Foi tudo tão triste, tão fúnebre, que não houveram maiores investigações. Acho que pensei que eu me sacrificaria por qualquer um dos dois, mas não soube dizer se isso de fato aconteceria se fosse eu quem estivesse no final da corda.
           A família inteira me culpava. Sei disso por causa dos olhares que me davam no enterro. Carla e eu tentamos nos falar mais uma vez depois disso, talvez uns três ou quatro meses depois. Não tocamos no assunto mas ele pareceu mais latente do que qualquer outra coisa. Como um dente podre em uma boca perfeita. Não a culpei por ter se afastado de mim.
Eu, por outro lado, preferi passar alguns anos fora do país. Abandonei o hiking ou qualquer atividade similar. Apenas passeava aqui e ali, com a comodidade do meu escritório ser meu laptop ou meu palm. E mesmo em um lugar ermo em Bangkok se consegue uma boa conexão wireless.
           Quase nunca me lembro do incidente ou de Carla ou das montanhas... raramente sou perguntado sobre minhas escaladas porque as pessoas que me conhecem agora mal sabem desse antigo hobby e se eventualmente descobrem acham por bem me preservar de falar dele.
Só lamento quando escuto America tocar em alguma rádio... ou quando Dorothy e Toto saltitam sobre os tijolinhos dourados das minhas lembranças ocultas. 

    

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Casualidades.

As casualidades do dia me fizeram atrasar. Cansaço, trabalhos e estudos acadêmicos e horários de ônibus. Quando cheguei na faculdade não esperava vê-la. Não naquele dia. Tinha uma prova e faltavam dez minutos para a aula. 
Ela veio correndo ao meu encontro e saltou nos meus braços como uma criança bem novinha se lançaria aos braços de um pai que chega de viagem. Eu a agarrei e ela tombou a cabeça. O sorriso de caninos ligeiramente incisivos e o nariz arrebitadinho mais lindo e suave do mundo inteiro. Suas orelinhas élficas estavam avermelhadas e ela estava muito bêbada. Não encontrava seus óculos, nem seu celular. Ajudei-a a encontrá-los estendidos sobre a grama fofa do campus e os guardei em minha bolsa.
A voz enebriada e doce me contava que havia me esperado desde três horas da tarde, que me amava, que bebeu a tarde toda com nossos amigos e me confessou que estava com vergonha de estar bêbada. Ela em muitos aspectos parecia um pequeno anjinho etéreo e perfeito.
Tive que abandoná-la no sofá do diretório acadêmico. Cheguei dez minutos atrasada para a prova. Estava desesperada por deixá-la sozinha, mas aquela prova valia 30% dos pontos daquela matéria.
Nunca deixei que ela soubesse, mas quando saí desconsolada da sala e a enconrei, ela dormia com a boquinha desenhada ligeiramente aberta. Roncava um pouquinho. Uma das pernas estava esticada sobre o sofá de dois lugares e a outra desfalecida fora dele. Sua saia longa de brim(uma das minhas favoritas) havia caído de maneira cruel deixando as pessoas entreaverem uma calcinha de algodão e as bordinhas de um absorvente. 
Talvez tudo o que vivemos até aquele dia não me permitisse perceber o quanto ela precisava de mim. Eu nunca tive certeza de estar tão apaixonada e mais tarde de amar tanto quanto a amava. Eu também precisava dela. Mas aquele dia ela precisava sôfregamente de mim e saber que eu não sabia o que fazer ou como fazer fez meus órgãos entrarem em pura agonia e escorrerem dos meus olhos em forma de lágrimas. 
Lavei meu rosto e a acordei tenramente... me desculpei muito por a ter deixado sozinha e a levei até a casa dos avós. A rua era perigosa demais, mesmo para nós duas. Eu a deixei em casa e voltei sozinha para a república.
Nesse dia soube que nunca estaria preparada para aquele tipo de amor, tão profundo, tão desesperado.
Se eu fechar meus olhos agora ainda sou capaz de lembrar como era tê-la em meus braços. A pequena pressão que seus ossinhos faziam em minha pele, e seus braços reuposados sobre os meus.
Nunca soube cuidar de uma coisa tão delicada quanto as pequenas borboletinhas lilás e suas asinhas de papel. E até hoje isso parte o meu coração.   

domingo, 9 de janeiro de 2011

O Mar.

Piscinas são cadáveres com uma mortalha transparente. Água morta. Água desperdiçada. Pré-esgoto. E cheiram à cloro. O cloro deixa meu cabelo esverdeado. Detesto piscinas.
Fiquei três anos sem ver o mar. Com excessão de um riacho que visitei, fiquei todo esse tempo sem nadar. Tolero os lagos e as lagoas. Gosto de rios e riachos. Eventualmente crescem árvores frutíferas em suas margens e vemos os peixinhos nadarem entre nossos dedos. Pequenas piabinhas e bagres escondidos nas beiradas de barro.Água gelada. Muitos insetos.  
Mas gosto mesmo é do mar. O mar é o rei de todas as águas. Me lembrando que todas as coisas tem princípio, meio e fim. E ele é o fim de todos os rios. Misterioso e infinito.
Quando se olha pra água, ela parece turva e poderosa. Caminhamos para a boca de um gigante assassino e vivo. Gigante tenro. Sabemos da existência de lulas de doze metros, das orcas e dos tubarões e plâncton e corais e algas marinhas, as perucas gelatinosas das sereias... mas vemos somente água. O mar é um deserto explodindo em vida. É tentador. Nadar no mar é uma experiência única. É a aceitação do esgoto e de toda a morte que o homem traz. Quem entra na água do mar, ainda que não saiba é humilde por um momento... e divide com os animais e seres marinhos a mesma dor que causa. O mesmo sol que queima demasiadamente. A mesma náusea das luzes artificiais.
Quando vou a praia, vou me encontrar sozinha com o mar. Me sento na areia e deixo o meu pé onde as ondas se desmancham. E contemplo.
O mar deixa de ser tímido quando se acostuma com alguém. E a impressão que tenho depois de muitos minutos é que sou eu quem controlo as ondas. "Venham brincar comigo, mas se amansem primeiro". E as ondas que molhavam os dedões do pé, por vezes brincam de vir fortes e molharem meus braços e meu corpo inteiro. E a areia se mostra tão fofa que poderia até ser uma cama. Vejo um tatuí nadar apressado. Um siri se desviar de uma garrafa de plástico vazia. Uma conchinha se deitar longe de casa, na areia seca.  Vejo cardumes de peixe saltar sobre as ondas. E aprendo onde se escondem as estrelas do mar e os tião-eremita. Pareço vinte anos mais jovem quando estou na beira do mar. Volto a ter seis. Uma menininha de maiô verde vendo o mar pela primeira vez. Pular ondinhas e castelinhos de areia.    

É como reencontrar um velho amigo. Um amigo que é um Deus.