domingo, 24 de maio de 2009

Sobre dias chuvosos...

Tinha uma boate onde a música era sempre alta e as luzes sempre rodopiavam, rodopiavam. Tinha uma garota despedaçada e também ela rodopiava. Ela achava que dessa vez terminaria de morrer, se quebraria por completo. Tinha um fantasma que era um personagem masculino ficcional e ficcionais eram suas palavras- que ainda assim eram cortantes. E tinha um outro, um corpo atrativo mas sem mente que a propusera um envolvimento e ela dissera "não" porque ela tinha mente e corpo. Tinha também uma garota, outra, do passado que carregava o sol,e cheirava à canela e temperos exóticos. Toda quente. Mas também a coisa mais livre e por isso não se valia a pena a prender, ela perderia o canto e minguaria. A garota despedaçada não era má, ou perversa. Ela era uma boa alma. Era frágil por dentro e ninguém notava a melancolia escondida de euforia e decisão. Tinha uma alma gêmea mas como gêmeas siamesas, elas não se completavam, as duas juntas eram um monstrinho de solidão e desesperança mas as duas se embebiam de suas danças e se concentravam na parte divertida do mundo em que elas eram a espinhela alienígena por serem legitimamente boas e verdadeiras. Elas sabiam de coisas delicadas e bonitas e fingiam uma pra outra estarem inteiras.
Então aconteceu de um dia uma dívida a ser paga. Era um dia de chuva. O dia feio e o dia mais bonito. A chuva caia e a fumaça dos cigarros dela escalava o céu preto. Era um dia estranho, ela vestia roxo e estava sem maquiagem. Tinha um silêncio pouco usual na atmosfera. Esse silêncio se fazia dentro dela, ela estava paralisada. Tinha um homem aquele dia, mas sempre tinham homens e mulheres e todos eram potencialmente perigosos pra quem está sozinho e pronto para morrer. Talvez haja uma beleza mórbida e estravagante em pessoas assim. E ele a quis de fato conhecer. Ela sublimou e lutou com o rush de sentimentos que insitiam em tentar sugir e mesmo com a vista cega pelo medo ela o viu. Mas naquele dia ela sorriu o sorriso mais triste, e não soube se ele percebia que ela não vestia seu verdadeiro rosto...aquele dia.
Mas dias generosos vieram, e ele era a coisa mais complexa e maravilhosa que ela sabia existir e resolveu o guardar consigo, como amigo talvez. Mas com suas mãos em concha, ele recolheu a matéria que havia sobrado da menina despedaçada e construiu uma nova. E muitos dias depois eles se beijaram. E agora ela se sente pronta de novo para ter alguém só seu. Ela o ama como se amaria um príncipe que derrota o dragão. O dragão era o medo. E ele sabe como cuidar de algo aparentemente forte mas que é mais frágil que qualquer criaturinha bebê. Em outros tempos ela cantaria "amor, amor" pelas esquinas, mas esse é um segredo seu: ele não é sua última esperança, nem uma esperança sequer. Ele é o fio traçado e emaranhado pelas Tríades... porque quando não há expectativas se é simplesmente. E assim ela o quer para si. Um querer sem querer. Um querer póstumo. Um querer maior do que os de todas as horas vividas. Ele forjou a necessidade com seu brilhantismo extraordinário, versos seus e emprestados, e um universo de coisas infinitesimalmente encantadoras. Ele a reconstruiu.

terça-feira, 19 de maio de 2009

O Fantasma das Cinco da Manhã

Primeiro escuta-se o barulho dos passos. A consciência um pouco enebriada pelos sonhos, ainda sem saber se era verdade. Então a voz. "Acorde, minha gatinha, estou em casa". Ela abria os olhos de plumas e ele sorria ao ver que tinha um pouco de remela neles. E então ela virava de novo. "Ei, você tem que acordar, garotinha, eu preciso de você". Então um "bom dia" rouco e afável. Ele a beijava sofrêgamente e contava várias histórias sobre o futuro. Ele a envolvia em uma corrente mítica e antiga e a fazia entender o significado de palavras novas em um dialeto estranho. Ele dizia que o amor dela era como "Deus"... inexplicável em palavras humanas. E então, ela se levantava, se lavava do cheiro dos dois e ia trabalhar.
Eles se conheceram casualmente, ele disse que estava apaixonado casualmente,(mas ela já estava apaixonada) e assim foram criando rituais e rituais. A teia da ficção urdindo urdindo urdindo como uma louca a teia de uma vida conjunta...e aos poucos ela ia jogando fora tudo, até seu próprio nome, e vestindo aqueles sonhos... tão perto do adormecer essa realidade. E ia sorrindo pelos cantos, e se gabando dessas horas. Íntimas, íntimas, pensava.
Mas um dia os passos não vieram, e ela não sabia se ele estava vivo ou não. As amigas diziam para ela esquecer, mas ela dizia que ele ainda não a tinha matado, então que gostaria que ele continuasse pensando nela com carinho. (Mas dentro, ele a assassinava com a ausência, e quando o relógio batia cinco da manhã ela estava agônica e então morria)... "mas ele não significa nada, minha querida"... "eu juro".
"Acorde. É de verdade", e ele voltou. Ela ainda o esperava por dentro. E quando ele se foi de novo, ela passou a trancar a casa. Anos passaram e ela trancou também seu corpo. Se casou, teve filhos, mas carregava pra sempre esse fantasma vivo, o não saber, o fantasma das cinco da manhã, aquela necessidade urgente que se tornou medo...um dia...passos... "acorde, minha gatinha"...

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Mutilação.

Elas foram nascidas um só organismo e perfeito. Xipófagas, em o que seria um eterno abraço...poderiam ter sido até os quarenta a principal atração do circo de bizarrices, junto da mulher mais gorda do mundo e dos anões com seus dedinhos demasiadamente curtos.

Mas com a ciência moderna, foi possível dessarranjar aquele corpo único e transformá-lo em dois. Os corações batendo descompassados após o bisturi romper o último dos fios que as ligavam... uma fina artéria que comunicava aqueles dois músculos. Poderia ser pior, elas poderiam ser o homem elefante, sonhando viver como gente, animal e não animal ao mesmo tempo, se ao invés de dividirem o fígado dividissem o hipotalo.

Uma delas no entanto tinha uma perna diminuta e aleijada, mal tocava o chão. Parecia uma tromba mumificada.

A medida que elas foram crescendo, talvez um pouco mais amarelada que as outras crianças. A aleijada olhava diaramente as três pernas sadias e lamentava, como não fazê-lo, a sua condição...antes não as tivessem separado e ela teria por direito o resto do seu corpo. E elas seriam ambas monstrinhas, e a solidão seria mais tênue.
Como compensação natural da desventura, ela era terrível, ela era seu próprio demérito e da sua boca saiam vespas que combinavam perfeitamente com o seu membro disforme. Quando somos machucados, os humanos, aberrações ou não, tendemos à ferir os demais, como se assim pudéssemos descontar o nosso mal. Nenhuma compaixão e caridade é suficiente, queremos a dor igual à nossa, nossa, essa dor imcompreensível por natureza, violando o santuário das pessoas saudáveis que nos cercam e tentam ser simpáticas. Desta maneira também adoecemos a alma. O ser humano definitivamente é um animal triste.

No aniversário, ela se maquiou e colocou um vestido branco e leve. O cotoco da perna como um fantasma projetando sob o tecido enquanto a irmã dançava e ria com os rapazes... ria com todos os seus dentes, com todas as suas pernas saudáveis.

O rímel escorre na trilha das lágrimas, sôfregamente, ela se levanta, e salta como um coelhinho até a sala. Todos desviam os olhares de seu jeito trôpego de caminhar...apoiando-se nas paredes e nas grades adaptadas. Sua irmã, os dentes e a boca abertas em um sorriso que ainda não havia morrido, surpreendida pela rapidez daquele corpo nefasto e desaliando, não consegue mudar-se para o luto. É muito tarde. A aleijada diz: "-Eu deveria ter morrido e apodrecido enquanto você fingia ser uma só."